O país parece ter-se já habituado à normalidade dos casos na saúde: são as urgências, o acesso, o despesismo – desperdício e até as fraudes, fazendo parte de uma triste coreografia que nos distrai e atordoa sobre a necessidade de uma verdadeira reforma para a saúde dos portugueses. Mas enquanto os problemas da saúde nos são noticiados, até com empolamento excessivo, poderemos estar a ignorar uma crise silenciosa, não menos grave, que o futuro nos antecipa: a crise na educação médica e o declínio da medicina académica.
A formação dos médicos é maioritariamente assegurada por faculdades de medicina públicas e a especialização médica é garantida, fundamentalmente, nos serviços do SNS, com o setor privado a contribuir para ambas com uma cota crescente, contudo ainda reduzida.
Preocupa-me a falta crescente de vocações e de candidatos em determinadas especialidades, a deixar desertas, só este ano, meio milhar de vagas para formação! As motivações desviantes são a oferta do trabalho por tarefas, a emigração e a escolha demasiado precoce pela medicina privada. Todas estas vão afastando os médicos das suas escolhas tradicionais, aquelas que nos permitiriam ao longo dos anos formar gerações de especialistas competentes. Por outro lado, a escassez de médicos formadores seniores, estes trabalhando no SNS cada vez mais em regime de part-time e assoberbados pelas pressões avassaladoras de produção clínica, vai criando uma crescente indisponibilidade para ensinarem e transmitirem experiência. Finalmente, a formação pós-graduada não dispensa o ambiente de uma certa academia clínica, ambiente formativo que hoje vai rareando no SNS, condicionado que está pela sua arrastada crise sistémica e atordoado que se sente pela pressão da produção e pela escassez de pessoal.
Mas também os cenários que se antecipam para a formação dos alunos de medicina fazem temer algumas ameaças: Existe hoje a perceção da falta de médicos, esta talvez mais devida à sua deslocalização para fora do SNS, à sua falta em certas especialidades e à deslocalização das geografias onde são mais necessitados, do que resultado da sua verdadeira escassez numérica. O número, quiçá sobrestimado, de 5,8 médicos por mil habitantes parecerá para nós até excessivo, mas se lhe reduzirmos 30 % para corrigir eventuais sobrestimas e saídas próximas por aposentação, Portugal manterá ainda suficiência médica com 4 médicos por mil habitantes (OCDE – 3,9/mil). Na vertente formativa graduamos anualmente mais de 1700 médicos, valor entre os mais elevados na OCDE, tendo uma comissão de que fiz recentemente parte estimando criteriosamente as necessidades de aumento para a formação médica em não mais de 2 % ao ano – um acréscimo que poderia facilmente ser acomodado por incrementos marginais em cada uma das 11 escolas médicas já existentes (quatro das quais formando até 2/3 do total de licenciados…). Por isso, sempre achámos que a proliferação de pequenas escolas médicas com uma base regional não contribuiria significativamente para o aumento pretendido do número de formandos, para além de, ao dispersar a capacidade docente nas escolas já existentes, poder vir a afetar a qualidade do ensino médico praticado no país. De notar que a qualidade de formação médica em Portugal é internacionalmente reconhecida, mas poderá passar a estar ameaçada, nomeadamente pelas condicionantes referidas para o SNS, que afetam em particular as Unidades Locais de Saúde que incorporam hoje os hospitais universitários (ULS-universitárias). As demandas de produção, a indisponibilidade do pessoal docente e também a instabilidade das mudanças no sistema de saúde têm, inevitavelmente, perturbado as condições para o ensino médico-clínico. Cumulativamente, os recentes acréscimos salariais para médicos do SNS (numa tentativa de aí os reter), tem levado a que troquem progressivamente as suas carreiras académicas nas faculdades de medicina por lugares mais bem remunerados no SNS, desertando assim das vocações académicas. Como resultado as faculdades de medicina lutam hoje cada vez mais com escassez de docentes clínicos, sendo importante acrescentar que estes docentes possuem preparação específica para a docência, já que em cada médico não existe por inerência um professor de medicina…
Se todos estes aspetos, que a criação de novas faculdades só virá agravar, não forem acautelados os rácios docente-discente nas escolas médicas sofrerão e a qualidade do ensino médico pré-graduado acabará prejudicada. Mas as crises devem constituir-se como oportunidades e na crise do nosso sistema de saúde deverá residir a oportunidade irrepetível de fazer renascer no país a medicina académica. O local de eleição é o ethos do centro clínico universitário que se torna agora premente recuperar; o local onde se pratica medicina de ponta, onde se educam e treinam os profissionais e onde se investiga e inova para a saúde. Fará muito em breve um ano que uma comissão de nomeação governamental, comissão técnica independente (e bem competente), de que fiz parte, entregou às tutelas da saúde e da educação um relatório detalhado onde se apontavam as linhas principais para a reformulação dos centros clínicos universitários e, com eles, da medicina académica. É que os hospitais com ensino universitário e os centros académicos clínicos aí existentes foram afetados pelas crises do SNS tanto quanto pela sua inclusão apressada na estrutura macro das ULS, deixando assim desprotegidas e prejudicadas essas verdadeiras reservas naturais para o desenvolvimento da medicina avançada e para o seu ensino. A comissão técnica propôs como modelo organizacional o consorcio entre hospitais, unidades de saúde, escolas de saúde e laboratórios de investigação, todos focados numa mesma missão colaborativa, e adotando métodos de gestão, de financiamento e carreiras clínicas-académicas adequados para proteger a medicina académica na sua tripla missão integrada de assistir, de ensinar e de investigar. A comissão entregou um relatório ponderado e com soluções reformadoras.
Reconheço total motivação e competência nas atuais tutelas da educação e da saúde e sei que só por falta de oportunidade, face a tantas outras prioridades, é que a reforma para os centros clínicos universitários não terá sido ainda produzida e publicada. Temos muita esperança de que venha a sê-lo em breve pois, tão ou mais importante do que cuidar do sistema de saúde, será mesmo proteger a reserva vital que assegurará a sua própria sustentabilidade futura – a medicina académica e os seus profissionais.
É que, sem medicina académica que valha não haverá sistema de saúde que nos valha!
Professor, Vice-Presidente da Comissão Técnica para os Hospitais Universitários, Presidente Conselho Nacional dos Centros Académicos Clínicos