Natal na Rua

A azáfama é grande entre as famílias que já só pensam na consoada e as ruas estão iluminadas. É nessas mesmas ruas que sobrevivem outras pessoas, sem casa, sem consoada e, muitas vezes, sem família. A VERSA foi ao encontro delas e mostra-lhe a realidade em Lisboa

Durante o dia, Mário, 65 anos, vende frascos de bolinhas de sabão, junto ao Oceanário, em Lisboa. «Sobretudo pelas crianças, dá-me muita alegria», conta o sem-abrigo, que dorme numa tenda, com três cadelas e o amigo Omar, com quem já partilhou apartamento. Já lá vamos. As memórias são muitas e Mário é falador. «A primeira vez que fiquei na rua foi em 2010. Trabalhava a recibos verdes, a montar e desmontar palcos para espetáculos, mas os gajos eram uns vigaristas! Ainda por cima, por causa dos recibos, tinha de dar 23% ao Estado».

Durante três anos ficou em situação de sem-abrigo até que, em 2013, conheceu o amigo Omar, malabarista nos semáforos da cidade, e foi viver para um apartamento. «Eles estavam nessa casa com autorização do dono, era ali nos Olivais», começa por revelar Laura Sousa, voluntária da Comunidade Vida e Paz e coordenadora da volta de rua que a VERSA acompanhou. «O problema é que apareceu um homem, riquíssimo, com herdade no Alentejo e muito dinheiro, que resolveu comprar o quarteirão todo. Para os tirar da casa teve a ajuda de um sucateiro, que os convenceu a sair por um dinheirito. Receberam 600 euros e vieram para a rua».

Mário e Omar ficaram sem escolha e a rua foi o seu destino. Mário, natural da Amadora, garante que nunca conheceu a mãe «nem por retrato» e ficou entregue, desde sempre, à família paterna. «Eles foram morrendo, e eu fui ficando sozinho», lamenta. Omar esconde-se dentro da tenda. Consumiu droga e não se sente em condições para falar.

Ter um novo teto é o que estes dois amigos mais desejam. «O que eu queria era um arranjo para a gente dormir porque não podemos estar aqui na rua. Se me dessem uma casa para dormir é que era uma história bacana, para não estarmos nesta miséria».

Durante a noite estão abrigados na tenda, mas assim que o dia nasce têm de a desmontar e colocar todos os pertences num carrinho e andar com ele pela mão. Mário “estaciona-o” enquanto vende as bolinhas de sabão. Omar desaparece para os seus malabarismos, pelos semáforos de Lisboa.

Mário teve uma vida comum. Trabalhou, casou e tem uma filha. Só não sabe se tem netos. «Nunca tive contacto com a minha filha». O trabalho surgiu, primeiro, ainda na juventude, na mercearia e drogaria de uma tia. Mais tarde veio a tropa, em Tavira. «Depois pirei-me para Espanha e estive lá mais de 20 anos, a trabalhar numa feira». Gostava de ter uma reforma. «Estive a descontar, cá em Portugal, até ir para a tropa. O resto dos anos estão quotizados em Espanha».

Casou-se com uma espanhola e, bem-humorado, revela: «Meteu-me os chavelhos…» Ao ir buscar esta memória começa a rir-se com gosto. «Um gajo para ser feliz tem de levar um par de cornos», e continua às gargalhadas. A filha é de outra mulher e já nasceu em Portugal. 

Uma das cadelas, Duda, encosta-se ao tutor em jeito de carícia. «Tenho três cadelitas, esta pequenina tem 12 anos. A comida para elas nunca falta. Falta mais comida à gente do que a elas», garante. Despedimo-nos. A noite está fria e começa a chover a potes. 

Mário abriga-se na tenda para mais uma noite, de descanso, mas sempre em sobressalto. Afinal de contas está desprotegido, as suas paredes são de lona e está na rua. «Eles, há uns tempos, podiam ter ido para um alojamento e levado os animais, mas não quiseram porque era muito longe. Aqui as pessoas gostam muito, sobretudo, do Mário. Há uma senhora, que vive no Parque das Nações, que todos os meses lhe dá 100 euros para ir fazer compras ao supermercado», desvenda a coordenadora dos voluntários, Laura Sousa. É também através dela que o Natal de Mário e Omar fica mais quente. «Costumo trazer-lhes uns miminhos, como vocês viram hoje: trouxe-lhes frango assado, batatinha frita e uma cerveja».

A próxima paragem é na Gare do Oriente. Ao contrário do que se verificava nos dois últimos anos, a gare tem agora meia dúzia de sem-abrigo, espalhados pelos bancos corridos de pedra. Mas são muitos os que aparecem, vindos de todo o lado, à procura de comida na carrinha da Comunidade Vida e Paz. A ceia oferecida é «um engodo para metermos conversa com as pessoas, elas irem-se abrindo e conseguirmos tirá-las da rua», explica Laura Sousa. Mas por aqui as coisas são diferentes. «No Oriente temos os que vão buscar comida e desaparecem, não vale a pena, não querem conversas. São pessoas com reformas pequenas ou com o RSI e depois já estão viciados em irem às carrinhas. Além disso, no Oriente é onde para muita gente a dar apoio e comida quente. Nós só damos umas sandes».

Rodrigo Carvalho, 45 anos, é brasileiro e está indocumentado. A medo aceita falar e, à medida que a conversa vai rolando, começa a abrir-se. «Cheguei há um ano, sou de Vitória do Espírito Santo. Aqui não tenho ninguém, sou só eu. E no Brasil, de família só tenho a minha mãe, o resto são parentes».

Deambula pelas ruas da cidade e não tem poiso certo. «Cada dia a gente vai procurando um lugarzinho coberto, para dormir, ainda mais agora que é essa época de chuva. Procurar um lugarzinho bom, quentinho, que não molha se chover de madrugada, fazer sua oração e pegar na mão de Deus».

Queixa-se de problemas com a AIMA e de ainda não ter conseguido avançar com a documentação, apesar de já ter feito o pedido online. «Eu tenho um celular muito velhinho, não dá para nada. Tive de pedir a outra pessoa para aceder à Internet». 

Por não ter documentos, assegura, ainda não conseguiu arranjar trabalho. «Ainda não consegui trabalho, nem vou conseguir para já porque ninguém quer dar trabalho, a gente na minha condição. Têm medo de pegar uma multa de 50 mil, 70 mil, 100 mil euros». 

Rodrigo tem experiência: no Brasil trabalhou como motorista, nas obras e como segurança. Agora sente, na pele, o que é a verdadeira dimensão de estar desempregado e com a rua como morada. «A gente fica mais ansioso para ter trabalho, porque o trabalho é o maior cartão de crédito que existe. Quando você tem trabalho consegue um lugar para dormir, na palavra. Chega ali e tem um quarto, por 300 euros. Você fala para a mulher, eu tenho trabalho só que ainda não recebi, e ela diz logo que você pode dormir ali e no mês que vem paga duas rendas. Ela liga para a empresa, falam que você está trabalhando, você já está se ajeitando, pelo trabalho. Então se você não tem trabalho você não tem nada, não tem crédito nenhum!», observa. «Se tiver trabalho o cara do café te serve ali o mês inteiro sem dinheiro, o da padaria vende pão, o do mercadinho vende arroz e feijão, porque eles têm uma garantia que vão receber». E resume: «O cara sem trabalho, sem referência… Não tem referência, não tem crédito, vai ficar no chão».

Além da dificuldade em conseguir atendimento na AIMA, Rodrigo queixa-se, também, de uma alegada taxa que é exigida aos imigrantes. «Nem posso lá ir, porque são 58 euros a taxa. Como é que eu vou num lugar desses, para pagar 58 euros, se eu não consigo nem 50 cêntimos para comer um pão? Aí é difícil». A VERSA explica-lhe que se trata de uma burla, feita através de um site falso, na Internet e aconselha o imigrante a voltar à AIMA.

Rodrigo só vê uma solução para conseguir arranjar algum dinheiro para se manter enquanto a sua vida não se compõe. «A única forma é sair pedindo. Mas um cara da minha idade, que sempre trabalhou, tem vergonha de pedir. Tem gente que vive disso porque perdeu a vergonha e não trabalha de jeito nenhum. Pode dar 100 euros para ele, num dia, que ele não trabalha». O brasileiro atira: «Não é tão fácil como as pessoas pensam!».

Arrumar carros seria outra solução, mas Rodrigo fala na «luta pelo território, porque já está quase tudo ocupado por outros arrumadores. E, na prática, quando você vai fazer uma coisa dessas os policiais também têm o trabalho deles, nas ruas, nos bairros, no centro. Eles vêm a gente arrumando carros e isso é ilegal. Então, eu não posso fazer uma coisa para ganhar dinheiro sabendo que é proibido. Se eu fosse apanhado a minha situação iria piorar ainda mais!». 

O Natal é só mais uma data no calendário mas, para Rodrigo, sempre com fé. «Deus está acima de tudo e Ele nunca vai largar a gente. Confie».

Ao todo, as quatro equipas de rua da Comunidade Vida e Paz, que fazem quatro rotas diferentes, deslocam-se a 100 pontos na cidade, onde sabem que estão pessoas em situação de sem-abrigo. «Muitos são foragidos, escondem-se muito bem por entre os sem-abrigo, mas a polícia, muitas vezes, anda atrás deles».

Raul Borrego, 54 anos, é um desses fugitivos. Não tenta escapar às autoridades mas sim à família da mulher, que ameaça vingança. «Ele deu três tiros nas pernas a um primo da mulher, por isso é que não pode aparecer lá na terra», conta uma das voluntárias. 

O homem, de etnia cigana, conta que nasceu em Sevilha. E foi também em Espanha que matou um rival, por causa de um negócio de droga que correu mal. «Fui vendedor ambulante durante muitos anos e fiz outras coisas que não poderei explicar-lhe assim de imediato…» Sorri nervoso. Perguntamos se essas “coisas” eram tráfico de droga e ele anui. «Estive 21 anos preso, em várias prisões. Matei esse homem e fui apanhado já em França, em Lyon. Passei por muito lado. Primeiro estive preso em Madrid sete anos. Depois, como eu sou uma pessoa problemática, mandaram-me para Portugal. Estive mais sete anos em Vale de Judeus e outros sete em Pinheiro da Cruz».

Raul conta que tem sete filhos. «Tenho três meninas e quatro homens, já tudo criado. O que é que acontece? Eu não quero ajuda de ninguém, tenho o meu orgulho». Recorda o apoio da mãe. «O meu pai, que Deus tem, deixou casa à minha mãe. Só que a minha mãe também tem muita gente em casa e eu tive de sair». A realidade é que não pode aproximar-se. É em Estremoz, no Alentejo, que as duas famílias vivem: a sua e a da mulher. No fim lá anui: «Se eu for lá ainda me cortam o pescoço. Mas gostava de ir passar o Natal com a minha mulher e os meus filhos. Nem que fosse escondido na bagageira de um carro e depois nunca saísse de casa».

Já junto a uma linha férrea outro homem esconde-se dentro de uma tenda. A zona é sombria e mal iluminada. Manuel, chamemos-lhe assim, cumpriu 25 anos de prisão por homicídio. Agora é procurado pela Polícia Judiciária. «Fez uma burla na compra de um carro», desvenda Laura. O homem pede ajuda, diz que quer sair da rua. «Ele está cheiinho de medo». O seu destino mais certo, se for detetado pelas autoridades, será de novo a prisão.

A viagem termina já depois das três da manhã. Ao todo, esta equipa de rua parou em 26 pontos onde existem pessoas em situação de sem-abrigo. «Saímos às oito da noite e, os primeiros, ainda estão acordados e é possível conversar com eles, que é o nosso principal objetivo. Mais para a frente já começamos a apanhar muita gente a dormir e deixamos a ceia. Gostávamos de ter mais tempo porque, muitas vezes, sentimos que estamos só a fazer a entrega dos alimentos e não é esse o nosso fim. O que desejamos é que cada vez mais pessoas saiam da situação em que estão», resume Laura Sousa.

As saídas dos voluntários acontecem todas as noites, em quatro rotas pela cidade. Mas além deste trabalho mais visível, a Comunidade Vida e Paz tem 22 respostas de apoio social para as pessoas em situação de sem-abrigo. Renata Alves, diretora-geral desta instituição, explica que a sua atuação funciona em três eixos: «O primeiro é ir ao encontro das pessoas em situação de sem-abrigo ou de vulnerabilidade social. O segundo eixo é o tratamento e a reabilitação, para o caso das pessoas que nós encontramos e que têm problemas do foro aditivo, ou seja, toxicodependência ou alcoolismo, e estão dispostas a mudar. Essas têm possibilidade de fazer um programa connosco. O terceiro eixo é a reinserção social. Ou seja, a comunidade oferece, aqui, um projeto integrado que vai desde a rua à reinserção social».

Esta IPSS conta ainda com o Espaço Aberto ao Diálogo, a funcionar em Chelas, que acolhe pessoas em regime diurno, que podem chegar através dos técnicos e voluntários que andam na rua ou por vontade própria. «Aqui são oferecidos serviços de higiene, refeições e é-lhes atribuído um gestor de caso, com o objetivo de perceber quais são as problemáticas, com vista a definir-se um plano para aquela pessoa».

Nas Olaias fica situada a Unidade Integrativa, um espaço de alojamento para 40 pessoas, de ambos os sexos ou casais, que podem trazer os seus animais. «Temos pessoas ali a trabalhar ou em fase de procura de trabalho. Temos outras que ainda estão numa indecisão ou com consumos ativos».

A Comunidade Vida e Paz tem, também, duas comunidades terapêuticas, protocoladas com o ministério da Saúde, para quem quer deixar o álcool ou a droga. «Em comunidade terapêutica só recebemos homens, ainda não estamos a receber mulheres para fazerem o seu tratamento. No entanto, as mulheres que chegam até nós, são encaminhadas para outras estruturas externas». 

Além das comunidades terapêuticas existem duas comunidades de inserção, com capacidade total para 84 pessoas. «São estruturas protocoladas com a Segurança Social, para aquelas pessoas que fizeram um programa de reabilitação mas que ainda não conseguiram resolver todas as competências para ficarem aptas para se autonomizarem».

Por fim, chega-se à reinserção social. «Depois de os utentes estarem connosco em reabilitação podem fazer uma transição gradual para a sociedade, e serem reinseridos, de forma que sejam ainda sujeitos a um acompanhamento psicossocial, nas nossas estruturas», avança Renata Alves. «Eles têm o alojamento e depois fazem toda a gestão da sua vida, seja emocional, seja a sua vida doméstica, e são acompanhados pelos técnicos. Temos um apartamento em Leiria, outro na Venda do Pinheiro, e outro em Odivelas. Depois temos um apartamento que está integrado na Rede de Cuidados Integrados de Saúde Mental, para as pessoas que apresentam patologia ao nível da saúde mental».

Para levar tudo isto para a frente, a Comunidade Vida e Paz, que é tutelada pelo Patriarcado de Lisboa, conta com 170 profissionais e 600 voluntários. A quantidade de voluntários aumenta durante a festa de Natal, que começa esta sexta-feira, 19, e se prolonga até domingo, 21, na Cantina da Cidade Universitária, em Lisboa

Uma festa onde as pessoas em situação de sem-abrigo podem conviver e tratar de diversos assuntos. «Temos muitos serviços, as pessoas podem fazer o cartão do cidadão, têm acesso a cuidados de saúde. Depois temos área de barbeiro e duche, área da motivação, área da espiritualidade e a roupa, que é muito importante. As pessoas têm a oportunidade de escolher roupa como se estivessem numa loja». 

Além das refeições, durante estes dias, há muita festa, com artistas convidados. «Procurarmos, em conjunto, com os voluntários, parceiros e benfeitores, aquecer os corações das pessoas, sobretudo nesta época natalícia em que as memórias estão muito presentes», avança Renata Alves. 

Uma época, no entender da diretora-geral da Comunidade Vida e Paz em que «a tristeza e a angústia ainda as acompanha mais e é isso que também queremos combater. Queremos combater a solidão, o isolamento, e sobretudo, reforçarmos os laços para conseguirmos provocar mudança. Se nos três dias de festa conseguirmos que alguma pessoa consiga sair da situação em que está, já valeu a pena fazer a festa. E todos os anos conseguimos que isso aconteça!».

Certo é que, segundo o último relatório do Núcleo de Planeamento e Intervenção junto dos Sem-Abrigo (NPISA), da Câmara Municipal de Lisboa, a quantidade de pessoas sem-abrigo, a dormir em alojamento temporário ou improvisado, desceu 7,2% em 2024, sendo no final do ano passado 3122. Aqueles que não têm teto, que vivem mesmo na rua, desceu 20%, de 548 em 2023, para 439, em 2024.