Um acontecimento na transição de ano

O que nos faz falar, agir e reagir, ou seja, o que promove a reação e desencadeia a conversa, fixa-se e transforma-se oportunamente num verdadeiro acontecimento. Tudo o resto é fugaz evento para ficar no fundo do baú ou tralha para esquecer e deitar fora

Aos dias da pausa ferial, inspirados por um roteiro religioso que enaltece o calor da fé natalícia e do encontro, sucede-se a noite da contagem decrescente, a contrariar o frio com folias motivadas pela perceção de um tempo contabilizado, tantas vezes desperdiçado na voracidade da festa, numa passagem que não tem um começo, apenas um final que lança expectativas. O antes, sabe-se. O depois é uma incógnita. 

Uma transição de ano pode por isso fazer um acerto. Ocasião cíclica, agarra o calendário para propor uma revisão. Afinal, do que foi no ano que termina, o que se mantém para o novo ano? Do que é presente e permanece, o que realmente vai prevalecer? 

A mitologia grega introduziu um conceito complementar para a leitura do tempo. Inspirado no titã Cronos, que, para preservar a imortalidade, engole os filhos que nascem, com medo de, num qualquer amanhã, ser deposto por um deles, o tempo cronológico devora e consome. Já o tempo kairológico oferece a oportunidade. Kairos é o deus do tempo oportuno, descendente de Zeus, o filho de Cronos, que conseguiu salvar-se das entranhas do pai e resgatar os irmãos para fundar uma dinastia olímpica. Na sábia intuição da filosofia clássica, somos e dizemo-nos no tempo oportuno, kairológico, sobre o manto do tempo cronológico. 

O tempo da oportunidade não é medido pelo relógio, faz parar o relógio pela intencionalidade da experiência, pelo impacto na memória de longo alcance, pelo momento que é hoje e será amanhã um verdadeiro acontecimento. Sophia expressou-o e Fanhais musicou-o, eternizando-o. «Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar». O acontecimento oportuno é verbal, em ação, altera a rotina. Conjugado no presente ou no gerúndio, não conseguimos ignorá-lo porque é na atitude ativa e reativa que se vence o tempo cronológico.

O que nos faz falar, agir e reagir, ou seja, o que promove a reação e desencadeia a conversa, fixa-se e transforma-se oportunamente num verdadeiro acontecimento. Tudo o resto é fugaz evento para ficar no fundo do baú ou tralha para esquecer e deitar fora.

A evolução tecnológica reforçou, mas inverteu o hiato. Parece um paradoxo. Do velho tempo do calendário de mão, da agenda que faz correr os dedos pelos dias, pelas semanas, pelos meses, página a página, mantendo a perceção de um percurso cronológico, passamos para a agenda eletrónica, no ecrã, sem página para tatear e folhear, sem necessidade de fazer buscas. Dir-se-ia que esta evolução facilitaria a oportunidade, mas a pressa e a velocidade revelam o contrário, consomem o discernimento, desviam o foco e precipitam.

Retomo o paradigma da transição, simbolicamente representado na agenda, na passagem de ano. Revendo os meses últimos, contamos uma sequência diária de horas televisivas com debates em deriva, alguns fora do eixo, consumidos pelo tempo cronológico, abusados por um oportunismo desviado, uma absurda adjetivação sem oportunidade. Na sequência, antevendo a posterior decisão que vai contar, os argumentos da escolha, volto à pergunta: o que realmente vai prevalecer? O que conta? O que é perene e o que é efémero? O que é ‘fogo-fátuo’, como diria Pessoa na profecia kairológica da Mensagem. O poeta via um ‘nevoeiro’ no país, que gera um ‘fulgor baço’, a ‘entristecer’, ‘sem luz e sem arder’. Se ‘tudo é incerto e derradeiro, tudo é disperso, nada é inteiro’, o que falta? Talvez o verbo oportuno da ação: ‘É a hora!’..