‘Só em ditadura existe harmonia’

Trabalhou como guionista da série Sai de Baixo e é o cartunista mais respeitado do Brasil. Mas Laerte Coutinho é também conhecido por em 2011, após três casamentos, ter decidido assumir-se como mulher. Muitos acharam que tinha perdido o juízo devido à morte de um dos três filhos. Laerte responde que está a descobrir-se

Fez a cobertura, enquanto cartunista, dos Mundias de 1978, na Argentina, de 82, em Espanha, e de 86, no México. Como está a viver o deste ano, no Brasil?

Ganhei aversão à ideia do futebol-comércio, um grande espectáculo com salários multimilionários. No início dos anos 60, o povo reunia-se na Praça da Sé, em São Paulo, e seguia os jogos pela rádio. Havia uma grande placa com um campo esquematizado e um ponto de luz que era manipulado por alguém lá atrás para indicar onde estava a bola, segundo a descrição da rádio. Há quem não acredite que era assim.

Chegou a trabalhar assim?

Não. Quando fiz tiras e textos sobre a copa já existia transmissão em directo pela televisão. Mas era um interesse forçado. Senti que tinha obrigação de acompanhar o gosto popular, porque era comunista. Depois, tive uma namorada que era corintiana e pensei: 'Ah, vamo nessa'. Gostei de jogar futebol em criança, mas não gosto de assistir. Nunca vi Ronaldo ou Neymar jogar. A última copa que segui mesmo foi em 66. Sofri quando Portugal eliminou o Brasil.

Guarda estes trabalhos?

Tenho alguns. Mas perdi tudo o que estava digitalizado quando houve um assalto à minha casa. Foi uma experiência violentíssima. Chegar a casa e ver a minha gata paraplégica na rua, as coisas todas reviradas… Estou a tentar recuperar alguns trabalhos. E os que não estavam digitalizados fui perdendo em exposições. É chato.

Quando é que começou a consumir BD?

Em criança. Tinha um interesse geral por grafismos. Ficava ansiosa para ir comprar na banca uma revista do Ziraldo, que criou a Turma do Pererê. Ele é um génio e aquilo era muito bom. Depois descobri boa produção de BD americana ou filo-americana. Quando percebi que fazia alguma coisa parecida e o poder que isso me dava, porque podia criar a ficção que me interessava, foi grandioso. Tinha 12 ou 13 anos.

Estudou música mas não concluiu o curso. Acabou por se dedicar só ao desenho.

Em 1985 passei por uma crise pessoal gigante. Terminou o meu segundo casamento, saí do Partido Comunista e do emprego que tinha, na Gazeta Mercantil, onde fazia ilustrações. Era um jornal de economia. Nunca entendi nada de economia. Surgiu um convite da editora Circo para fazer BD. Tive um adiantamento mensal que foi decisivo para que mandasse tudo à merda. Fiquei a fazer quadrinhos, como os Piratas do Tietê.

Mas antes fez material de propaganda política. Era a militância comunista que a empurrava para estes trabalhos?

Entrei para o partido na ditadura, em 73/74. O pano de fundo era a construção de uma sociedade socialista. Gostávamos muito de Álvaro Cunhal. Tentámos fazer coisas, como encontros e sessões culturais, ignorando a ditadura. A partir de 74, houve uma explosão de votos no MDB [Movimento Democrático Brasileiro], onde estava agregada toda a oposição ao ARENA, que era o partido de Governo. Foi um momento de viragem. Em 79, eu e uns amigos fundámos uma empresa para produzir material de campanha para sindicatos, a troco de dinheiro.

Para os metalúrgicos de São Bernardo de Campos, onde estava Lula.

Sim. Lula sempre foi muito lúcido e percebeu que os jornais tinham todos o mesmo material, independentemente de quem os lia. Eram feitos pela mesma pessoa. Neste quadro, ele desafiou-me a criar uma equipa para trabalhar com os vários sindicatos, de uma forma mais personalizada. Juntei amigos, que entretanto saíram da prisão, onde foram presos pela ditadura, e criámos a empresa. Lula é um líder nato. Ouvia toda a gente mas tinha a sua posição muito própria, que prevalecia. Foi assim com Dilma. Ele pensou: 'Vou elegê-la'. E conseguiu.

Dilma será reeleita em Outubro?

Ela não é o meu sonho de liderança, mas dado o quadro da oposição, é a melhor opção. O pior que pode acontecer é a população perder o pouco de conforto que ganhou com as políticas sociais de Lula e de Dilma.

O Brasil é um país ingovernável?

O mundo todo é ingovernável, no sentido de conseguir controlo e equilíbrio. Só em ditadura existe harmonia. Em sociedades modernas e complicadas, como as nossas, os acordos são essenciais, combinando forças que são todas opostas e conflituantes. A única forma de governar é manter a vigência dos acordos e dos seus efeitos.

Já se inspirou em alguma obra ou autor português para desenhar?

Quando estava a ler Fernando Pessoa caiu-me nas mãos a colectânea Eu Profundo e Outros Eus. Achei aquele texto poderoso. Estava à procura de uma história para os Piratas do Tietê e, na mistura de universos estranhos entre si, cheguei à possibilidade de pôr Pessoa a interagir com os Piratas. O poeta queria atirar-se de uma ponte do rio Tietê e os Piratas queriam matá-lo ainda mais. Hilariante. Depois, ilustrei um poema de Mário de Sá-Carneiro, Eu Queria ser Mulher, a pedido do editor de um suplemento da Folha. Nesta altura já me vestia de mulher.

Chegou a publicar no Diário de Notícias. Como surgiu o convite?

Não me recordo bem. Tinha um agente que fez a ponte com o jornal. Penso que durou uns dois anos. Tive reacções bem positivas a partir de Portugal, apesar de algumas referências serem muito brasileiras.

Integrou ainda a equipa de guionistas do Sai de Baixo [SIC], programa de humor que foi um sucesso no Brasil e em Portugal. Como foi lá parar?

Eu trabalhava com o Cláudio Paiva, primeiro na TV Pirata e depois na TV Colosso. Depois, começaram a fazer o Sai de Baixo e convidaram-me para participar. Andei durante cinco anos entre S. Paulo e o Rio, onde participava nas reuniões de construção das histórias e dos diálogos. Mas estava cansada e saí. Entrei numa crise económica muito séria. Perdi os dois ou três lugares onde trabalhava simultaneamente. Num jornal e numa revista que pararam as rotativas.

E agora tem trabalho?

Continuo com a tira na Folha de São Paulo. Um dia destes saí à rua e encontrei uma travesti. Não a conhecia e ela olhou para mim e perguntou: 'Você sai sempre assim vestida?'. E eu respondi: 'Sim'. Ao que ela pergunta: 'Quer que olhem para si como uma mulher?'. Eu disse que era essa a ideia. 'Você tem uns cabelos lindíssimos', disse ela. Agradeci e observei que toda ela era bonita. Aí ela pergunta: 'Você está na prostituição também?'. E eu respondi: 'Quem me dera. Infelizmente sou jornalista' [risos].

A sua nova forma de estar, como mulher, não desvia as atenções do seu trabalho?

Claro que sim. Em quase 40 anos de carreira nunca dei tantas entrevistas. Passei a ser o cartunista que se veste de mulher, muito assediado pela imprensa. Virei um escândalo. Mas isso cruza-se com a minha própria curiosidade. Estou a descobrir-me, olhando para aquilo que me representa mais e para o que me expressa melhor. Apresento publicamente a minha inquietação desde 2011, quando o podia fazer na minha privacidade, como muita gente faz. Há quem considere que estou a ser obscura, por moda. Vivo num panorama de reacções bem variado.

Se calhar porque casou com três mulheres, teve filhos. Viveu como um homem.

Sinto-me mulher, num corpo de homem. Este é o facto. Agora é tentar compreender este jogo bem complexo. Género e orientação sexual articulam-se mas são coisas diferentes. Sempre fui homossexual. Mas isso assustou-me e neguei durante muito tempo. Os meus três casamentos não foram nenhum tipo de infelicidade. Foram críticos, por motivos variados, entre eles a questão sexual, mas foram períodos da minha vida muito positivos. Tive filhos lindos.

Perdeu um deles em 2005, num acidente de carro. Há quem diga que criou este 'boneco' depois da morte do seu filho.

Ninguém me disse isso na cara. Mas houve quem tivesse escrito nestes termos. Fiquei revoltada. Existirá alguma relação, com certeza. A morte de um filho é algo muito forte, muito trágico. Altera tudo. Mas a conclusão a que algumas pessoas chegaram é que eu tinha ficado maluca e que tinha perdido o juízo. Eu deixei de ser o Laerte homem. Não me estou fantasiando. Eu sou assim.

Em que medida é que a morte do seu filho alterou 'tudo'?

As alterações dão-se por caminhos nem sempre visíveis. Passei a tratar o meu trabalho de forma diferente e a morte do Diogo foi decisiva para esta mudança. Não faz sentido negociar coisas que eu sei que já não funcionam. Tenho um modo novo de trabalhar, abandonei os meus personagens e o modo de os construir. Passei a fazer tiras incompreensíveis para a maior parte das pessoas, ouvi queixas, ouvi elogios, mas sinto-me mais próxima do sentimento que tinha quando era jovem e criava.

Os seus pais estão vivos. Como reagiram quando se começou a vestir de mulher?

Houve estranheza e manifestaram isso. A minha mãe até hoje ainda fala nisso. O meu pai sempre deixou claro que achava isso uma coisa muito estranha. Mas não perdemos o afecto.

O mesmo com os seus filhos?

O mesmo com os meus filhos. São lindos [ri-se e abraça a filha, de 24 anos, ao seu lado]. 

ricardo.rego@sol.pt