Medalha sem véu

Talvez  não pareça, pelo semblante tranquilo e o cabelo curto, que por certo ajuda a manter a discrição. Mas Maryam Mirzakhani é uma sobrevivente que escapa às convenções. Queria ser escritora durante a juventude na sua Teerão natal, mas um dia deu-se o momento ‘eureka’, quando o irmão mais velho lhe explicou, a seguir a…

Medalha sem véu

Abraçou desde então os números e nem uma tragédia ocorrida na sua adolescência, quando regressava a casa depois de umas olimpíadas nacionais de matemática noutra cidade iraniana distante, conseguiu interromper esse trajecto. O autocarro que transportava várias alunas que tinham participado na prova despistou-se e morreram várias das passageiras.

Hoje, passadas umas décadas, Maryam é professora na prestigiada Universidade de Stanford, nos EUA. Mas, mais do que isso, é a primeira mulher que pode ostentar uma medalha Fields, o equivalente ao Nobel da Matemática, que premeia de dois a quatro participantes com idade inferior a 40 anos. Este ano, o prémio, atribuído de quatro em quatro anos pela União Internacional da Matemática (UIM) foi maximalista: além de Maryam, o brasileiro Artur Ávila também fez história como o primeiro latino-americano – e lusófono – a arrecadar a medalha; mas o canadiano-americano de origem indiana Manjul Bhargava e o austríaco Martin Hairer também cantaram vitória.

Dos dois últimos reza a história, mas o picante ficou inteiramente reservado a Maryam. O site The Higher Education nota o poder simbólico desta vitória. A medalha é atribuída desde 1936 e as mulheres só começaram a poder dedicar-se à vida universitária em pleno praticamente desde o pós-Segunda Guerra Mundial. Matemáticas de finais do século XIX e inícios do século XX, como a russa Sofia Kovalevskaya (1850-1891) ou a britânica Mary Sommerville (1780-1872) precisavam de esconder dos maridos os livros de problemas ou, pelo menos, de lhes pedir autorização para os usar. A alemã Emmy Noether (1882-1935) participava nos exames com um nome masculino e foi convidada, com muitas objecções do conselho científico, a ser professora na Universidade de Göttingen pelo consagrado David Hilbert. Perante a recusa dos pares, Hilbert puxou do espírito e respondeu com uma observação simples: “Não vejo por que o sexo de um candidato possa ser um argumento contra a sua admissão como docente. Afinal de contas, estamos numa universidade, não nos banhos públicos”.

Mas só quase 100 anos depois desta frase, proferida em 1915, uma mulher venceria a Medalha Fields… Há outra dose de picante, além desta, no percurso de Maryam Mirzakhani que tem a ver, evidentemente, com o seu país de origem. Quando pensamos em Irão, uma das primeiras imagens que nos ocorre são as mulheres cobertas, de certo modo reféns do véu e dos preceitos islâmicos. Maryam foi a primeira a desdizer o cliché, logo após a cerimónia de entrega do prémio, em Seul (Coreia do Sul) – por sinal, apresentado pela primeira mulher Presidente do país e pela primeira dirigente da UIM – quando começou a dar as primeiras entrevistas: “Devo dizer que o sistema de educação no Irão não é como as pessoas possam imaginar”, disse ao Guardian. “Enquanto me formava em Harvard, tive de explicar várias vezes que pude frequentar uma universidade no Irão”.

Apesar da separação de género nos vários níveis de ensino, o país dos aiatolas garante às mulheres uma “certa liberdade de movimentação”, atesta José Manuel Arsénio, embaixador em Teerão de 1998 a 2005. “Não há qualquer forma de discriminação a nível do ensino, de maneira nenhuma. Aliás, no meu tempo a frequência universitária feminina era maior do que a masculina”.

A verdade é que o Presidente do Irão, Hassan Rouhani, rejubilou com o prémio e até divulgou no Twitter um sentido 'parabéns' com a imagem da matemática de cabeça descoberta. Só ele está investido de poder para o fazer, com a devida autorização do Supremo Líder religioso, Ali Khamenei. A imprensa iraniana deu-lhe honras de primeira página, mas com o traje a preceito.

É certo que as mulheres devem cumprir à risca o traje em locais públicos, uma espécie de “emblema do regime, que é essencialmente de fundamentalismo religioso”, continua Arsénio. Daí que haja uma elite feminina no país. Hoje a viver nos EUA, casada com um cientista informático checo, Maryam deixa o véu na gaveta, mas conclui com a simplicidade que aparenta nas imagens que dela foram sendo divulgadas: “Quanto mais tempo passo com a matemática, mais entusiasmada fico”. 

ricardo.nabais@sol.pt