Sem conflito de gerações

Cristina Real tem 25 anos. Filipe Faísca tem o dobro – 50. Cristina ainda agora está a dar os primeiros passos no mercado da moda – depois da estreia há seis meses, no Sangue Novo, plataforma de novos talentos da ModaLisboa. Já Filipe é um veterano que apresentou colecção pela primeira em 1991. O SOL…

Sem conflito de gerações

Quando aceitaram este desafio não se conheciam pessoalmente e, antes de esta conversa começar, a primeira coisa que o Filipe pediu foi que a Cristina lhe mostrasse alguns trabalhos. Era importante para o arranque deste diálogo?

Filipe Faísca – Claro. Sou um tradutor da matéria. Através da matéria percebo o feeling da pessoa. Acho que há, no trabalho da Cristina, um feeling muito contemporâneo e actual, nota-se que é uma pessoa sensível ao que se passa no mundo e à mulher de agora. Mas eu tenho perguntas para lhe fazer… Tu trabalhas sozinha em casa, Cristina?

Cristina Real – Trabalho em casa, mas agora já não estou sozinha, tenho uma senhora que me ajuda a confeccionar, porque percebi que as peças têm de ter acabamentos que nós jovens ainda não dominamos. Acho importante termos alguém que nos apoie e nos dê a opinião.

FF – Salta rapidamente para a indústria, não fiques em casa. É um peso muito pesado começarmos isolados. O que acontece é que não conseguimos delegar, tudo passa por nós. Quando estamos em casa só queremos fazer aquilo que está na nossa cabeça e a indústria ensina-nos aquilo que é possível. Claro que podes argumentar que queres ter uma confecção artesanal, mas acho que só o deves fazer depois de teres tido a experiência na indústria.

CR – Devo experimentar as duas coisas?

FF – Sim. Mas o salto para a indústria é dificílimo. Ando cá há muitos anos e ainda não o consegui fazer.

Se é assim tão difícil para um veterano, como é que um jovem dá esse salto?

FF – Esse é o grande problema de quem estudou em Lisboa, como eu. Quem faz o Citex, no Porto, tem uma ligação directa à indústria, a própria escola estabelece essa comunicação. Aqui são tratados numa redoma de vidro e enchem-lhes o ego.

CR – Mas eu fiz Design de Moda no Citex. Sou de Lisboa, fiz lá o curso e voltei.

FF – Isso muda tudo. Ficaste com contactos e com uma disciplina que há naquela escola e que é real. A moda já não pode viver só de conceptualismos.

CR – Sim, mas dificulta agora estar em Lisboa… Quando abordo as fábricas sinto muitas dificuldades. Ainda há pouco senti isso, por exemplo, com o calçado.

FF – O calçado é um assunto de chorar!

CR – Pois é… As fábricas portuguesas estão a desenvolver calçado para grandes marcas internacionais e em grandes quantidades e eu chego lá e quero fazer 10 ou 11 pares de sapatos para um desfile e as empresas não querem ter esse trabalho. Disseram-me que não ganhavam nada com isto. Acabei por ter sorte porque arranjei dois senhores muito simpáticos que me vão fazer os sapatos que desenhei.

FF – A Cristina tem 25 anos, eu tenho 50, somos duas gerações, e a conversa é a mesma. Não muda. Cada vez se fala mais de Portugal como um país produtor de calçado, mas depois não se leva a sério o que é desenhado em Portugal…

Onde estava o Filipe aos 25 anos?

FF – Cheguei a Lisboa com 20 anos. Aos 25 anos tinha acabado o IADE e estava a abrir a minha primeira loja. De resto, era mais inseguro do que ela! E naquela altura havia mais preconceitos. Coisas do género: este gajo é doido só porque fez um blazer em neoprene!

E a Cristina, quando percebeu que queria trabalhar em moda?

CR – Desde muito pequena… A minha mãe tirou um curso de Alta Costura em Paris, mas nunca exerceu. Mas acho que ficou daí… Tenho um material em missangas, que vou incluir neste desfile, e que é do tempo dela. É lindo. Mal o encontrei percebi que era o que me faltava. Acho que desde pequena senti que queria esta área, vi várias escolas e acabei por escolher o Citex. Fui sozinha, não tinha ninguém, deixei tudo em Lisboa. Foi muito duro, mas foi uma aprendizagem muito realista.

FF – Eu queria ir para o Citex, mas estava muito sensível para ir para o Porto sem família nem amigos. Mas era o que devia ter feito. É, de facto, uma aprendizagem mais realista e isso facilita o encontrar de uma linguagem. E encontrar a linguagem é o mais importante para um designer. E depois o que foste fazer?

CR – Quando acabei o curso fui estagiar para a Alexandra [Moura] seis meses, mas acabei por ficar um ano. Seis meses só dava para desenvolver uma colecção e achei que devia ficar mais tempo. Depois estive em Paris a estudar francês e a mandar currículos. Ainda fui a duas entrevistas em duas jovens marcas, mas senti-me como se estivesse na China, por causa da forma como nos tratam e as condições que nos dão. Eles não precisavam de designers, mas de costureiras, porque aquilo eram só cópias.

FF – Cristina, mas isso há em todo o lado: em Paris, em Milão…

CR – Mas queriam que assinasse como se eu tivesse feito aquela colecção! Segui o meu instinto e não aceitei. Entretanto vi as candidaturas para o Sangue Novo e decidi arriscar porque já não criava uma colecção desde o final do curso. Esta colecção acabou por correr bem, consegui ter umas peças à venda na loja Scar-id no Porto e fui convidada para participar nos International Design Awards, nos EUA, onde ganhei o segundo prémio. Foi isso que me deu forças para continuar na ModaLisboa. Entretanto até fui chamada para uma entrevista cá em Portugal, mas disseram-me que tinha de me mudar para o Norte e não podia dar continuidade ao trabalho em nome próprio. Sinto-me na corda bamba…

FF – Tens de continuar a mandar currículos para que possas experimentar a indústria e perceberes o que te satisfaz mais. Mas estar na indústria não quer dizer que deixes de ter os teus projectos individuais. Não é legítimo que peçam isso. Só o fazem porque és uma miúda. A mim também me aconteceu o mesmo.

CR – Tenho amigos que foram despedidos porque tinham projectos pessoais. Pessoas que agora estão a dar o pulo internacional. O nosso país corta-nos as asas. Estou desanimada… Nos últimos meses aprendi a levar com portas na cara. Claro que já sabia que era assim, mas estou a começar a viver esta situação na pele. Por exemplo, fui à [feira] Modtíssimo ver tecidos, gastei dinheiro para ir ao Porto porque tinha marcado com uma representante, cheguei lá e ela não me recebeu. Disse que não me podia atender porque estava com uns clientes estrangeiros. Voltei para Lisboa sem nada. Há um desrespeito pelo português que parte do próprio português. Desprezam-nos. Fiz chamadas em que só me perguntavam: 'Mas quem é a menina?'.

FF – Há uma coisa fundamental para ultrapassar isto e que não existe em Portugal: uma associação de designers de moda.

O que diria a esta geração da Cristina?

FF – Não digo o mesmo a toda a gente. É preciso ver caso a caso porque o ego é uma força que pode ser muito destrutiva e há muitos miúdos a escolherem as profissões em função da visibilidade que podem vir a ter. Não foi isso que senti na Cristina. Ela trabalha com o coração, que é algo fundamental. Isso sente-se, por exemplo, quando fala do legado da mãe. Além disto, acho que não podemos continuar com o queixume. Enquanto não fizermos nada para nos darmos ao respeito e enquanto não nos impusermos não vale a pena queixarmo-nos. Está nas nossas mãos fazermos alguma coisa para que a indústria da moda em Portugal seja vista com olhos sérios e não apenas como uma coisa de gajas nuas. Em Paris, por exemplo, existe uma Chambre Syndicale e é uma indústria de milhões. Aqui também podia ser uma indústria de milhões, até já temos as fábricas. Mas continuamos a achar que é uma coisa de malucos e drogados.

CR – Há muita gente que continua sem ver a moda como um trabalho, mas é. Não sei como será o meu futuro. Aprendi a viver o hoje. Se pensar no amanhã tenho um ataque cardíaco.

FF – Estamos todos a aprender a viver o hoje. E tu, Cristina, estás a começar a perceber que ou tens ou não tens, ou queres ou não queres. As dificuldades que vão surgindo servem para perceberes o nível de foco que precisas de ter e com isso perceberes se é mesmo isto que queres. 

raquel.carrilho@sol.pt