Não conheço ricos felizes

Aos dez senti-me eterno. Aos vinte julguei poder deixar uma marca. Aos trinta entorpecido e sem tempo. Aos quarenta morto para a vida que conheci. Já passaram mais de três anos, o tempo suficiente. Não voltei a viver como antes, sinto que é a altura de entrar num outro mundo, de passar a ser, de…

Só que depois vem a realidade. Sempre irremediável, sempre inadiável, os compromissos, dilemas, carregos. Carregar os pecados do mundo não é uma tarefa para homens e mulheres. Não tanto pelo peso, por muito que seja o carrego há sempre espaço nos corações ou nas almas. Não, não tanto pelo peso. Muito mais pela abdicação de nós, quanto mais carga trazemos menos capacidade teremos de libertar o que em nós é gordura, o que em nós é fundamental resolver. Enquanto tomei o pequeno-almoço estavam dois homens a pedir no outro lado do vidro onde peço uma torrada aparada com pouca manteiga. Tentei ler os jornais, concentrar-me no buraco da PT, no Papa Francisco, no pobre destino de Nuno Crato e no galão sem açúcar. Saí ao fim de poucos minutos, dei-lhes moedas e segui caminho. Pesado. Culpado por lhes oferecer um alívio para mim e não para eles, culpado por não virar este mundo do avesso em nome de uma ideia de justiça, uma ideia arrogantemente utópica, culpado por não fazer tudo o que está ao meu alcance por medo de perder o pouco que tenho. 

É um dos dilemas mais frequentes. Há milhares de livros sobre o assunto, centenas de passagens nos versículos de todas as religiões, perguntas por responder ou cujas respostas mudam em função dos humores das épocas. Contudo, há perguntas que não devem ser evitadas. Como há situações que, de tão adiadas, acabam por apodrecer nas nossas mãos. Tentamos evitar o incómodo: mantemos relações artificiais e preferimos, tantas vezes, discutir a vida dos outros para não pensar na nossa própria. Só que lá está… o mundo corre lá fora. E há oportunidades que precisam de nós com os olhos abertos. Não só amores, empregos e ilusão. Ter os olhos abertos implica um compromisso absoluto. Neste minuto que aqui está, que aqui estamos às voltas, morreram 300 crianças. Não há lágrimas, palavras e braços que cheguem, mas cada lágrima, palavra e braço pode fazer a diferença. Abrir os olhos, ver, não desistir. Não desistir de nós, em primeira análise não desistir de nós. 

É irritante a tendência para me penitenciar de uma coisa e, no dia seguinte, fazer exactamente o mesmo e tornar a penitenciar-me. Talvez seja um problema dos solitários que, por turvo que pareça, são-no mesmo quando estão bem acompanhados. É por isso que dificilmente viveria no campo onde as desigualdades, existindo fortemente, não são uma visão de holocausto. Para um solitário a grande cidade é o único lugar possível. Porque entre uma multidão pode proteger-se mais facilmente da curiosidade, do desejo, da simpatia e da inveja dos outros. Um verdadeiro solitário vive na maior parte do tempo bem com isso. A sua tranquilidade é proporcional à capacidade de passar incógnito, despercebido, de ser um entre a multidão indiferenciada. Só numa grande cidade se pode viver, envelhecer e morrer sozinho. Para uns pode ser um inferno. Para outros, a única escapatória a ele.  

A grande cidade onde encontrei tantos solitários, alguns aparentemente felizes e outros sem qualquer solução ou escapatória. Acabo de me recordar de uma senhora, engraçado… Conhecia-a velha, mais de oitenta, numa casa em ruínas no bairro onde nasci. Sou incapaz de lhe recordar a cara, mas na memória será eterna. A felicidade quando a visitei, o lanche a que me obrigou, um rascunho de felicidade de minutos e a partilha de um segredo – no quarto, numa cómoda tão antiga como ela, mostrou-me a roupa que guardava para o dia da sua morte. Encontrei depois outras como ela, abandonadas no tempo, íntimas sem intimidade e com uma roupa guardada. A obsessão de não darem trabalho, a obsessão do silêncio, a obsessão que nos castiga e nos transportará, se não tivermos sorte, ao destino a que hoje viramos costas. 

Parece que defendo uma ideia em que não acredito: a de que a pobreza condena necessariamente à infelicidade e à tristeza. Sinceramente, não creio nisso. A felicidade tem dias. Mas já vi pessoas felizes, geralmente pobres. Ricos não, desconheço ricos felizes. Não tento explicar. Os meus deformados e cínicos olhos são limitados para tanta urgência de compreensão. De uma coisa sei, o dinheiro distrai do resto, mesmo da felicidade. Ou sobretudo dela.