Papa Francisco ‘desarrumou os conceitos’

Analisar o Pontificado de Francisco, colocando-o do lado dos conservadores ou dos progressistas é uma tarefa impossível. Francisco “desarrumou os conceitos” que têm servido para posicionar as pessoas dentro da Igreja Católica, considera Aura Miguel, a jornalista da Rádio Renascença que acompanha os assuntos da Santa Sé, acrescentando que a sua forma de governar é…

O Papa argentino herdou uma instituição manchada pelos escândalos da pedofilia e da corrupção e ainda em choque com a resignação de Bento XVI. Mas depois da surpresa da sua eleição, e numa rápida análise sobre o que mudou nos últimos 21 meses, é caso para dizer que a Igreja Católica nunca mais será a mesma. As mudanças não são, para já, fracturantes nem revolucionárias, até porque, diz a vaticanista portuguesa, o Papa “não é um sprinter mas um corredor de maratonas”. Ou seja, primeiro escuta, depois reza e só então decide.

Uma forma inédita de governar a Igreja 

Dizem os cânones da Igreja que o sucessor de Pedro goza de “poder supremo, pleno, imediato e universal, que pode exercer livremente”. Mas a maior novidade deste Pontificado é que Francisco não quer governar sozinho e convoca outros para o ajudarem nesta missão. “Está a implementar a colegialidade”, sublinha Austen Ivereigh, lembrando que o Papa criou uma comissão de oito cardeais (agora nove) para o apoiarem na reforma da Cúria Romana e na governação da Igreja. Ou seja, além dos bispos e dos membros dos vários dicastérios da Santa Sé (uma espécie de ministérios da Cidade Estado do Vaticano), conta com um grupo de conselheiros próprio.

A convocação de um Sínodo extraordinário sobre a família, dividido em duas fases (Outubro de 2014 e 2015) e antecipado por um vasto inquérito aos crentes, é a “prova de que o Papa quis conhecer a Igreja na sua totalidade”, considera o bispo auxiliar de Braga, D. Francisco Senra Coelho. “Quis perceber a dificuldade e a complexidade das questões. Não quer estar isolado mas em comunhão com todos”. Entre as perguntas colocadas aos católicos estavam os temas da homossexualidade, do divórcio e da natalidade. 

Apesar de a discussão ter sido lançada ao mundo, e de ter ficado bem patente no encontro que as opiniões dos bispos divergem bastante, o Papa já veio lembrar que o Sínodo “não é um parlamento”. E que, na prática, é a ele que cabe a última palavra.

Para o sacerdote José Alfredo Patrício, especialista em direito canónico, há ainda outra novidade: o recurso aos quirógrafos pontifícios, “documentos emanados directamente pelo Papa, sem qualquer burocracia, e que comunicam decisões sobre assuntos concretos. Francisco tem usado este instrumento para criar comissões que o ajudem a tomar decisões”.

A simplicidade do discurso e a forma como se pronuncia sobre temas concretos da vida quotidiana tem facilitado a comunicação dentro e fora da Igreja, diz ainda a jornalista da Rádio Renascença, lembrando os conselhos práticos dados pelo Papa aos casais: pedir desculpa, dizer ‘por favor’ e ‘obrigado’. “Ele disse-lhes: ‘É habitual zangarem-se e às vezes [até] voa um prato mas por favor não acabem o dia sem fazer as pazes’”.

Posição dos recasados na Igreja ainda em aberto

Podem os católicos divorciados que voltaram a casar receber o sacramento da comunhão na missa? Foi esta a questão mais polémica no Sínodo da Família e a que mais dividiu os bispos. O Papa deixou que esta discussão avançasse a um nível sem precedentes, ao ponto de alguns considerarem que estava em causa a indissolubilidade do matrimónio cristão.

Ao chamar para introduzir este tema junto dos cardeais o cardeal Kasper, claro defensor do acesso à comunhão dos recasados desde que precedido de um caminho de reconciliação, Francisco foi conotado com os progressistas. Mas o Papa ainda não se pronunciou, lembra Aura Miguel. “Ele deixa que venham ao de cima linhas divergentes e temas que levam à ambiguidade, para que se veja o que não está bem, pois prefere uma Igreja acidentada do que estagnada”.

O bispo auxiliar de Braga lembra que o acolhimento dos recasados já vinha sendo claramente proposto pela Igreja mas reconhece que, “apesar de estar escrito e recomendado, não estava reflectido nem assumido pelos pastores”. Contudo, D. Francisco Senra Coelho acredita que o Papa vai “manter-se fiel à doutrina”.

Austen Ivereigh, especialista nestas matérias, diz que se houver convergência neste assunto no próximo Sínodo, em 2015, o Papa respeitará o consenso dos bispos. Caso contrário, “uma possibilidade em cima da mesa é não haver uma estratégia pastoral universal, mas estratégias diferentes para europeus, africanos, entre outros. Ele não é um centralista, acredita na colegialidade e na possibilidade de a Igreja regional chegar às suas decisões pastorais”.

Maior acolhimento de gays nas comunidades cristãs

A posição da Igreja perante os gays foi outro tema quente a animar o Sínodo. Num relatório preliminar do encontro, chegou a falar-se numa “valorização” das pessoas com tendências homossexuais, que deveriam ser melhor recebidas nas comunidades cristãs. Mas nas conclusões, e perante a contestação interna dos padres sinodais que não se reviram neste discurso, a posição da Igreja foi bem mais contida. Contudo, é claro que o Papa quis deixar avançar a discussão para um nível nunca antes visto. Na sua viagem ao Brasil, Francisco já tinha adiantado o que pensa sobre o assunto, merecendo o aplauso dos defensores dos direitos dos homossexuais: “Se uma pessoa é homossexual e procura Deus e a boa vontade divina, quem sou eu para julgá-la?”, disse o Santo Padre, surpreendendo o mundo.

José Alfredo Patrício considera que neste como noutros temas polémicos, Francisco defende “a solução do encontro”.

Ou seja, “lembra que o Evangelho não é, em primeiro lugar, um conjunto desconexo e avulso de doutrinas, mas o encontro com uma Pessoa viva. E é no âmbito desse encontro que devem procurar-se as soluções pastorais para as pessoas que vivem situações delicadas”.

Reforma da Cúria começou pelo Banco do Vaticano

Ao criar um conselho de cardeais, o Papa pediu ajuda para fazer o que tinham reclamado os cardeais nas reuniões que antecederam o conclave: uma reforma da Cúria. Composto por 28 dicastérios, o Governo da Santa Sé auxilia o Papa na gestão da Igreja, mas a estrutura é burocrática, pesada e, por vezes, pouco diligente. “O objectivo é haver um emagre¬cimento da quantidade de dicastérios, congregações e comissões, tornando-as mais leves, de-senvoltas e eficazes na sua maneira de agir”, explica a jornalista portuguesa que segue os assuntos da Santa Sé. As novidades só serão conhecidas no próximo ano. 

As reformas que já se começaram a sentir incidem sobretudo na vertente económica, embora no que diz respeito ao Banco do Vaticano tenham começado já com Bento XVI. Na prática, Francisco criou uma espécie de Ministério da Economia para estudar o que fazer com o Banco, envolto em escândalos de corrupção e alvo de verdadeiros casos de polícia.

Mendo Ataíde, português que fez uma tese de doutoramento sobre a reforma desta instituição, explicou ao SOL que o Instituto das Obras da Religião (IOR), nome oficial do Banco do Vaticano, serve para gerir activos que tenham em vista obras de caridade e religião. Mas tem a sua regulamentação financeira própria e não acompanhou as reformas do sistema financeiro europeu que apostaram na transparência das operações. Ou seja, até à reforma imposta por Bento XVI, o IOR não tinha uma regulação independente que permitisse detectar infracções como fugas fiscais ou branqueamento de capitais, tornando-se atractivo para os infractores. “Com a criação deste mecanismo, e com maior transparência nos processos do IOR, que foi implementada com um esforço mútuo do Moneyval (grupo de especialistas do Conselho Europeu) e do Vaticano, a tendência será para identificar preventivamente problemas que possam vir a surgir”, acredita.

Francisco, que chegou a ponderar a extinção do Banco, acabou por confirmar a sua necessidade e reforçou os mecanismos de supervisão e vigilância, no que diz respeito ao registo dos seus clientes e na análise de operações que possam ser vistas como suspeitas. Já durante o seu pontificado, foram bloqueadas duas mil contas suspeitas e encerradas outras três mil, detidas por pessoas não credenciadas.

Tolerância zero no combate à pedofilia 

A revelação de abusos sexuais de menores cometidos por padres tem continuado a abalar a Igreja no pontificado de Francisco, com os casos a sucederem-se no sul de Espanha, onde o Papa chegou mesmo a telefonar a uma vítima que lhe escreveu uma carta a denunciar um sacerdote, pedindo-lhe perdão em nome da Igreja. 

Neste combate à pedofilia, iniciado em grande escala por Bento XVI, Francisco prossegue a política de “tolerância zero”, tendo criado uma espécie de tribunal onde são julgados, de forma urgente, abusos cometidos por membros do clero. Para estes, foram também agravadas as penas aplicadas pela Igreja que, só entre 2004 e 2013 afastou 848 religiosos por estarem envolvidos em escândalos sexuais.

Nestes quase dois anos de governação, o Papa tomou ainda outra medida inédita: ordenou que o ex-núncio da República Dominicana, o polaco Jozef Wesolowski, ficasse em prisão domiciliária na sua residência no Vaticano. Também o bispo da diocese paraguaia de Ciudad del Este, Rogerio Livieres, foi afastado do cargo por ser suspeito de encobrir casos de pedofilia de um sacerdote nos Estados Unidos.

Defesa de uma Igreja pobre para os pobres

Ao defender uma igreja “pobre para os pobres”, o Papa justificou a escolha do nome Francisco (inspirado em São Francisco de Assis) e deu de imediato uma ideia do que seria o seu pontificado. Mas “esta agenda social não é algo exterior ou meramente formal: nasce do seu próprio estilo de vida e está-lhe inerente, foi uma constante ao longo da sua vida”, sublinha o padre José Alfredo Patrício. Os seus gestos e opções vão funcionando como recados para o mundo mas também para dentro da Igreja. Por exemplo, a recusa de viver no Palácio Apostólico e a escolha da Casa de Santa Marta, espaço mais simples, impõe, indirectamente, aos sacerdotes, consagrados e leigos um modo de viver mais austero.

Nas palavras, Francisco tem também denunciado de forma sistemática o que diz ser uma “cultura do descartável” e as dinâmicas de uma economia e de um sistema de finanças “carentes de ética e onde homens e mulheres são sacrificados aos ídolos do lucro e do consumo”.

rita.carvalho@sol.pt