A verdade de Kim

Durante décadas ela foi uma das mais enigmáticas figuras de culto da música alternativa norte-americana. Vocalista e co-líder dos Sonic Youth, conseguiu manter-se distante de todas as tricas e  preservar uma aparência tão esfíngica na sua vida privada, quanto apaixonada quando agarrava na guitarra ou compunha um dos muitos temas que assinou nos 16 discos…

Kim Gordon liderava com o marido Thurston Moore uma das mais aclamadas e bem sucedidas bandas de rock alternativo de Nova Iorque e era, além disso, uma figura no mundo das artes plásticas. Tudo equilibrado, sem drogas, escândalos e álbuns que desiludissem os fãs e os críticos. E uma filha, Coco Gordon Moore, que o casal criou com tanta disciplina como numa família tradicional de empregos das 9 às 5. Uma quadratura do círculo, uma banda poderosa e um casamento que navegava em águas doces.

Em 2011, os 27 anos de casamento terminaram, por iniciativa dela, e ao mesmo tempo findava a banda. Um golpe só, separou aquilo que estava junto em casa e nos palcos. Os fãs não podiam mais do que lamentar e indagar dos motivos, que se mantiveram por revelar por muito tempo.

Finalmente, na recentemente lançada Girl in a Band, uma autobiografia muito elogiada que põe fim a anos de mutismo, Kim, hoje com 61 anos, conta tudo, com alguma raiva e dor, mas sem perder o nível, nem sendo fútil e vingativa. A actriz Amy Poehler disse que ela escreve como toca:”Com a ferocidade, honestidade e abandono criativo de uma artista singular”. A realizadora Sofia Coppola que se confessa admiradora de Kim Gordon, sustenta: “Ela é cool, inteligente e digna . Girl in a Band é um registo fascinante e honesto cheio de emoções puras e  grande discernimento”.

Outros salientam que é uma crónica da vida de uma banda nova-iorquina num meio que evoluiu do fulgor punk para o pós capitalismo e deixou de ser o que era quando Kim, com Thurston Moore, fundou os Sonic Youth em 1981. E é também uma descoroçoante narrativa sobre o fim de tudo isso.

O livro começa com o relato do último concerto da banda em São Paulo, que seria também o último momento em que o casal estaria junto. Contado com crueza: “O meu futuro ex-marido e eu enfrentávamos a multidão de brasileiros, as nossas vozes pronunciando velhas palavras e para mim era uma banda sonora de energia pura e raiva e dor”. E desabafa: ”Nunca me senti tão sozinha na vida inteira”. Kim descobrira que Thurston tinha um affair – os últimos tempos em que o casal se cruzava no palco e em casa como robots acabavam ali .

Kim conta também a sua infância em Hong Kong e no Hawai e a forma como o seu irmão Keller, diagnosticado como esquizofrénico, moldou a sua personalidade e, de certa maneira, a sua ferocidade na escrita e no palco.

Mas apesar da aura de Kim se ter mantido intacta após a publicação da biografia, nem toda a gente foi favorecida pela sua pena honesta. Courtney Love, (a viúva de Kurt Cobain) foi uma das menos poupadas, Billy Corgan, líder dos Smashing Pumpkins – banda de culto nos anos 90 – foi considerado como um fedelho insuportável e  de Jeff Koons, Kim disse que ninguém no mundo gosta dele. Um trecho foi inclusivamente rasurado na passagem do último rascunho para a obra impressa. Foi quando Kim, após escrever que Lana Del Rey não fazia ideia do que era o feminismo e romantizou o suicídio e a decadência, perguntava se assim era porque não tratava ela de pôr fim à sua vida triste? Essa interrogação foi apagada da autobiografia. 

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