Algumas ideias sobre o desejo

Escrevo quase sempre o que penso e raramente o que sinto. Porque ao desenhar palavras que chocam com o presente, a escrita torna-se um instrumento do fígado ou coração. Prefiro escrever o que penso e tentar o impossível milagre de encontrar a essência do que sou, do que somos. Sentir não é coisa que se…

Disso tenho poucas dúvidas. Não se trata de uma mentira ou de qualquer menorização da escrita. É um exercício de verdade e uma prova de respeito pelas palavras, uma estratégia para não as misturarmos com o que em nós é impureza. Aliás, em relação à mentira, se perdermos o cuidado rouba-nos o espaço de manobra. Começamos por uma pequenina e sem darmos conta acabamos enredados em justificações; a mentira cresce e transforma-se numa matrioska. De umas saem outras, dificilmente voltamos a perceber qual foi a inicial. É aí que os preocupados com a moral encontram um razoável ponto de equilíbrio: passam a acreditar nas mentiras que dizem. Pela minha parte tento não o fazer. Posso não dizer a verdade, mas nunca minto. Pelo menos assim o espero. 

Não podemos ter certezas. Basta-nos um ou dois exercícios e protegemo-nos dessa tentação – retirar o som à televisão, por exemplo. Quando o fazemos vemos uma realidade diferente. As pessoas parecem outras; mais o que são interiormente e menos o que a voz faz por iludir. Se não ouvirmos o mundo, é a mesma coisa: acabamos por ser nós a colocar as legendas e os juízos de valor. Sem a distracção da escuta, a vida é um argumento de um filme mudo. Perguntei a um surdo como via, respondeu-me que via o que eu não podia – um circo de silêncio onde as palavras são ditas com os olhos e o corpo. E a mentira e a hipocrisia são mais difíceis de ser lei. Um mundo de infelicidade. Uma provação inumana.

Já vi alguma coisa do mundo. A suficiente para dizer que a orfandade está no vazio, não apenas na morte. Está nas paredes dentro das famílias, não apenas na ausência delas. Está na raiva que cresce onde um dia existiu esperança e leite materno – os piores de todos os órfãos não são os que perderam os pais, mas aqueles que os tendo choram pela sua existência. Órfãos em vida. 

Não tive essa infelicidade. Com os meus pais estive bastas vezes distante, mas numa proximidade distante, o princípio de todas as intimidades. O pai um dia falou-me da sua cama, adoraria que lhe ficasse com ela quando partisse. Por uma vida lá vivida, por um tempo em que se julgou imortal, por outro em que pensou poder fechar os olhos para não os abrir. Prefiro ficar com os livros, respondi. E não cumpri. Nem com os livros, nem com a cama. De mãos nas mãos, como se me ouvisse, contei-lhe que estou na fase de me desfazer do que tenho, não de acumular mais tralha, mesmo da que vem do coração. E quanto à cama não troco a minha por nada, o único lugar onde apenas me lembro dos sonhos. 

Desfazer-me do que tenho e observar. Perto do meu café da manhã há uma montra que reflecte os olhares que passam. Gosto de a observar, de ver as mulheres e homens em relances aparentemente distraídos, sigo os passos dos que ganham um suplemento de confiança ou dos que perdem a pouca com que despertaram. Sim, as montras relevam mais sobre quem passa do que acerca do que vendem – porque roupas, carros e electrodomésticos são imagens paradas, pedaços de um catálogo, enquanto os olhares das pessoas reflectidas mostram, pelo menos aos meus olhos, de que cor estão vestidos por dentro. 

Talvez a dúvida essencial seja a de saber se escolhemos o caminho ou se o caminho já estava pronto para nós o escolhermos. Ideologicamente a segunda hipótese repugna-me: somos nós que o desbravamos, como poderia ser de outra maneira? Mas qualquer coisa de indefinível me diz o contrário, qualquer coisa me diz que somos o que conseguirmos ser em cada uma das portas a que formos convocados. Preciso de um livre-trânsito.

Ou de um psicanalista, quem sabe? Nunca fiz psicoterapia ou psicanálise nem li sobre as perspectivas e escolas da psicologia – vejo Tony Soprano nas consultas com Jennifer Melfi, conheço de trás para a frente Woody Allen, sei o suficiente. A ideia da cura, qualquer que seja, é-me simpática. E quando é por palavras, então o meu poético entusiasmo redobra. Os psicólogos acreditam muito no que fazem, no que dizem. Como os padres crêem no poder da oração, os astrólogos nas estrelas e as cartomantes no tarot. Uns precisam de uns, outros precisam de outros. E há quem precise de todos. Afinal, substituem com vantagem o 'Red Bull'. Além das asas oferecem-nos certezas. Vou marcar a consulta. 

O meu amigo Daniel Sampaio diz-me para não mexer muito, jura-me que estou mais do que resolvido e estruturado, que o melhor é não mexer. Brinco, nunca pensei fazê-lo. Psicologia para mim tem uma palavra associada: desejo. Basta ler Freud e Jung e pronto, ficamos letrados na urgência do desejo. Um corpo sem desejo pede meças a um jardim encantado por flores mortas. Mas um corpo com desejo de animal parecerá um jardim habitado por serpentes e anjos negros. Tudo se passa no interior do nosso interior, a começar pelo talento com que se deseja. Um pouco a menos e condenamo-nos a uma morte antes da morte, a mais condenamo-nos à sofreguidão eterna. Talvez o segredo esteja na capacidade de zelar para que o desejo tenha sempre a quantidade de lenha certa. Nem mais, nem menos. E, pelo sim pelo não, que se mantenha uma divisão da casa equipada com todo o combustível do mundo… não se vá dar o caso de nos apaixonarmos.