Fisco sem controlo

A falta de controlo das passwords que dão acesso ao sistema informático do Fisco tem permitido que muitos funcionários acedam a dados fiscais sem serem detectados.

O sindicato dos funcionários dos impostos admite que existem senhas de antigos trabalhadores que nunca foram desactivadas e que continuam a ser utilizadas por outros que assim podem aceder 'anonimamente' às declarações de rendimentos no sistema. E reconhece também que, devido à falta de recursos humanos, há passwords que são cedidas pelos funcionários ao pessoal administrativo para que estes entrem no sistema e os ajudem a tratar dos processos.

Algumas destas situações já foram até detectadas pelos serviços de auditoria da Autoridade Tributária (AT), que se depararam com casos em que uma mesma senha pessoal foi usada em simultâneo em vários computadores. “A cedência pelos funcionários das suas passwords ao pessoal administrativo é uma prática que existe e é muitas vezes a única forma de se cumprirem os objectivos”, diz ao SOL o presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, Paulo Ralha, lembrando que isso resulta não só da carência de recursos humanos, mas também da pressão para se obterem resultados.

Funcionários pedem sistema igual ao dos médicos

Para travar este descontrolo, o sindicato propõe que a AT aplique aos trabalhadores um mecanismo de fiscalização  já  usado na saúde, que permite a cada  médico verificar os últimos acessos com a sua password ao sistema informático.

Elaborada por peritos da Faculdade de Ciências do Porto, a Plataforma de Dados de Saúde, que reúne informação clínica de todos os cidadãos do país e que pode ser consultada por todos os profissionais, tem mecanismos de controlo inovadores. “Ao acederem ao sistema, os profissionais podem saber quais foram os últimos 10 acessos com a sua senha. E se verificarem que não foi feita por eles, podem denunciar a situação”, explica Luís Antunes, professor daquela faculdade, que colaborou com o Ministério da Saúde para a criação desta base de dados, aprovada em 2013 pela Comissão Nacional de Protecção de Dados.

Segundo o perito, este projecto podia ser adoptado pela Autoridade Tributária: “Na Plataforma de Saúde, os utentes são os próprios auditores, pois têm acesso a um portal onde podem ver quem, e onde, acedeu aos seus dados clínicos. E se acharem que alguém o fez indevidamente, denunciam a situação e procede-se então a uma investigação interna”.

Para o sindicato dos trabalhadores do Fisco, a aplicação deste sistema seria uma boa alternativa ao sistema de 'lista VIP', pois permitiria proteger todos os cidadãos, em vez de apenas algumas figuras públicas, dos abusos no acesso aos seus dados pessoais.

Qualquer contribuinte poderia, assim, entrar na  plataforma e verificar quem esteve a ver os seus dados. A única particularidade a ter em conta no sistema do Fisco era a de omitir informação quando o contribuinte estivesse a ser alvo de uma investigação: “Nesse caso, só apareceria o registo dos acessos que nada tinham a ver com a inspecção”, sublinha Luís Antunes, recordando que este tipo de controlo é importante e existe em todo o mundo, nomeadamente nas redes sociais.

A ideia de criar a chamada 'lista VIP' surgiu depois de, a 26 de Setembro, terem saído notícias no jornal i,  com dados fiscais do primeiro-ministro relativos aos anos 90, no âmbito do caso Tecnoforma, o que originou uma investigação interna. No relatório da “Auditoria a eventuais consultas a dados pessoais de Sua Excelência o Primeiro-ministro”, revelado ontem pela revista Visão,  concluiu-se que,  entre Janeiro e final de Setembro de 2014, houve 106  consultas ao processo de Passos Coelho, efectuadas por 34 trabalhadores. Segundo o documento, a maioria dos funcionários justificou a sua atitude com “mera curiosidade”, outros disseram que não se recordavam de ter acedido aos dados e outros ainda admitiram que as credenciais de acesso possam ter sido usadas por terceiros. 

Apesar de os auditores terem concluído que não havia indícios de que a informação contida nas notícias tivesse sido veiculada por  trabalhadores do Fisco, o director dos serviços de auditoria, Acácio Pinto, considerou, num relatório de 28 de Novembro,  que era urgente avançar com acções de formação para combater a “insensibilidade” dos funcionários em relação à protecção de dados pessoais. E  propôs a criação de um “controlo  informático de acesso para um universo restrito de contribuintes”. Em Dezembro,  António Brigas Afonso, o director-geral da AT que entretanto se demitiu, assinou um despacho favorável.

No entanto, o mesmo documento confirma que antes da conclusão da auditoria já estava em curso, desde Outubro, o teste a um mecanismo de alertas. Este sistema passava pela criação a nível informático de “alertas que serão despoletados em caso de verificação de consulta ou alteração de dados de determinados contribuintes, que na ausência de melhor conceito denominamos VIP”. A proposta partiu da área de segurança informática e foi autorizada a 10 de Outubro pelo ex-subdirector José Maria Pires.

Lista com quatro nomes

Segundo afirmou o presidente do sindicato dos funcionários do Fisco, esta polémica 'lista VIP' teria apenas quatro nomes: Passos Coelho, Paulo Portas, Cavaco Silva e o próprio  secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio.

Esse mecanismo de controlo já levou à investigação disciplinar de 152 funcionários dos impostos. Destes, 36 foram alvo de processos disciplinares, cinco casos estão em averiguações e outros 111 já foram notificados a prestar declarações aos serviços de auditoria da AT.

Todos os processos foram abertos depois de o subdirector-geral da AT ter dado luz verde à aplicação daquelas novas regras de auditoria interna, que permitiam o controlo em tempo real dos acessos feitos pelos funcionários a certas personalidades, garante o sindicato. Até essa altura, não havia um único processo em investigação. 

O arquivamento dos processos disciplinares é, aliás, um dos temas que Paulo Ralha levará à reunião com a nova directora-geral da AT, Helena Borges, solicitada  para  a próxima semana. “Estes processos são ilegais porque se baseiam em orientações ilegais”, defende o sindicalista, argumentando que fazem discriminação entre contribuintes e teriam de ser sempre autorizadas pela Comissão de Protecção de Dados e pelo Parlamento.

Na AT, onde por dia se fazem 200 mil a 300 mil acessos a dados dos contribuintes, a generalização de alarmes a todas as consultas iria bloquear totalmente o sistema informático – garantem ao SOL vários funcionários. 

Por outro lado, muitas das investigações de fuga ao Fisco ficariam em risco. “Operações como a do Monte Branco seriam impossíveis”, avança Paulo Ralha, explicando que as investigações funcionam em rede, ou seja, a partir de um contribuinte podem ter de aceder a dezenas de outros, de todos os pontos do país.

Por isso,  para sugerir à nova directora, além da adopção pela AT do sistema existente no Serviço Nacional de Saúde, o sindicato tem outras propostas alternativas à da controversa 'lista VIP'.  Entre elas,  a criação de um sistema preventivo de alerta sempre que são adquiridos bens de luxo acima de 250 mil euros, como barcos, carros de alta cilindrada ou imóveis: “A AT devia ser alertada automaticamente sempre que um contribuinte adquire um bem de luxo e depois podia cruzar a informação com as declarações fiscais do contribuinte e verificar se aquele sinal exterior de riqueza bate certo com os rendimentos declarados”.

Ex-governante defende controlo apertado, inclusive dos VIP

Rogério Fernandes Ferreira, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, concorda com um controlo mais apertado da consulta de processos fiscais. “Não se pode permitir que qualquer funcionário da AT aceda sem regras e livremente à informação fiscal dos contribuintes”, refere ao SOL, frisando que as medidas tomadas até hoje não preveniram o abuso de dados fiscais nem possibilitaram “averiguar de forma adequada quem a eles teve efectivamente acesso”.

O antigo governante e presidente  da Associação Fiscal Portuguesa considera adequado restringir os dados de determinados contribuintes 'célebres': “Não é estranho que existam certas situações com necessidade de protecção acrescida, como é o caso de cargos públicos, que necessitam de especial protecção”.

* com João Madeira