A corrida

Na Líbia, a loucura do líder coexiste ainda com os demónios de uma história tribal que o progresso não apagou.

excepcionalmente, retomo um excerto de um longo texto que em 2008 escrevi sobre a líbia. é um voto, ou seja, uma esperança:

«no topo do arco do triunfo, o escultor colocou em lugar de honra duas magníficas estátuas de bronze. a história dos dois irmãos que elas representam merece ser contada. há muito, muito tempo, uns dois mil e quinhentos anos pelas nossas contas, os púnicos de trípoli e os terianos chegados a cirene desentendiam-se regularmente sobre as fronteiras dos respectivos territórios.

entre a tripolitânia e a cirenaica, as areias do sara chegam, amiúde, ao próprio mar. são centenas de quilómetros de terra inóspita que só os nómadas da região e as caravanas, oriundas da áfrica continental, atravessavam. por causa dos direitos de passagem nesta fronteira de vento e comércio, se confrontavam as lideranças dos dois maciços montanhosos, até que alguém que a história não regista, mas devia, sugeriu que o conflito se dirimisse através de uma corrida. as partes aceitaram e assim se fez: os de trípoli e os de cirene lançaram, no mesmo dia e à mesma hora, dois pares de atletas numa correria que terminaria onde eles se encontrassem. aí se marcaria a fronteira.

os irmãos filleni correram como o vento e a fronteira foi marcada a este de sirt, num porto de escoamento de caravanas que hoje se chama sultan. os cirenaicos, descontentes, contestaram o resultado. para evitarem nova guerra, os heróis de trípoli ofereceram as suas vidas ao altar dos derrotados. assim termina a lenda que as duas estátuas de bronze evocam. só não se percebe porque é que mussolini, que se inebriava com guerras e conquistas, aceitou que o seu arco em terras líbias, homenageasse uma mensagem de paz. se calhar, não conhecia a lenda.

esta corrida é, também, uma metáfora da própria líbia, que não é bem um país, mas três numa imensa fornalha. nas profundezas do deserto, a fixação só é possível em oásis que quase se contam pelos dedos das mãos. a terra atravessa-se de sul para norte, até à estreita faixa costeira, porque essa é a direcção da vida e o sentido da riqueza. depois, a líbia oferece dois outros países, polarizados a este e a oeste pelas únicas regiões húmidas que conhece, as dos maciços de cirene e trípoli. mas, entre ambas e para lá delas, manda sempre a travessia. durante milénios, foi este o destino, como se o tempo tivesse sido suspenso pelo sol e em terra mandassem apenas as areias, os ventos e as tribos nómadas de berberes».

actualização: espero que o exemplo dos irmãos filleni seja lembrado por estes dias. na líbia não ocorre apenas mais uma ‘revolução por contágio’. na líbia, a loucura do líder coexiste ainda com os demónios de uma história tribal que o progresso não apagou. a história hesita entre guerra civil e aventura democrática.