Vertigem

A partir de 12 de Março, a crise é simplesmente o chão que a gente pisa. Quem julgue que tudo está escrito, desengane-se. Tudo se está, de novo, a escrever.

mesmo os que esperavam um grande protesto se surpreenderam com a dimensão das manifestações do passado dia 12 de março. 200 a 300 mil pessoas de todas as gerações e credos quiseram dizer a si próprias que ninguém tem que estar à rasca sozinho.

sem o cansaço e o descontentamento provocados pelas políticas de austeridade dos últimos anos não se compreende o sucesso dessa fantástica mobilização.

mas houve algo mais, qualquer coisa que está para lá da palavra ‘basta’ e que toca as profundezas da existência. com efeito, aquela multidão não se imaginava, sequer, como tal. declinou esse ‘basta’ de mil modos diferentes, trazendo para as ruas os seus desabafos e humores em papeis improvisados. a multidão acorreu em grande número porque se quis medir enquanto povo.

o poder, qualquer que ele seja ou venha a ser em resultado de eleições antecipadas, está obrigado a ouvir. porque a 12 de março o povo celebrou-se e redescobriu-se como soberano. mas não é certo que não se lhe esgote a paciência.

a segunda reflexão que esse sábado excepcional suscita parte da constatação de que muitos saíram à rua pela primeira vez ou pela primeira vez em muitos anos, exactamente porque intuíram ser o momento e a circunstância de se poderem afirmar como povo sem mediação, para lá dos partidos, sindicatos e associações.

pairou por aquelas manifestações um ‘não sei quê’ a 25 de abril, que para uns foi nascimento e para outros revisitação, que associo a carradas de imaginação e toneladas de dádiva e solidariedade. os que, como eu, acreditam que o partido e o sindicato são instrumentos de cidadania e não meras máquinas de emprego e influência, estão obrigados a reflectir seriamente sobre os seus próprios limites.

essa reflexão é tanto mais oportuna quanto é evidente que a antipolítica, o antiparlamentarismo e o antipar- tidarismo também marcaram presença, mas não foram hegemónicos nas manifestações. a grande maioria das pessoas que desceu às ruas fê-lo pelas razões da sua própria experiência da crise e em linha com o manifesto dos promotores.

o 12 de março não foi um ‘dia da ira’, um grito de revolta em formato desesperado. também não sabemos se foi o primeiro dia de um ‘levantamento nacional’. dele apenas se pode dizer que define um ‘antes’ e um ‘depois’.

acrise politica em que o país entretanto mergulhou cruzar-se-á não apenas com uma vertiginosa aceleração do protesto social, mas também com uma opinião pública muito mais atenta e exigente. até 12 de março, a crise oprimia e deprimia; a partir de 12 de março, a crise é simplesmente o chão que a gente pisa. quem julgue que tudo está escrito, desengane-se. tudo se está, de novo, a escrever.