Verdade e consequência

Espero bem que Portugal não venha a ser mais uma triste ilustração desta realidade absurda em que a Europa se está a transformar.

no momento em que escrevo ainda nada se sabe sobre as condições de governabilidade do país e a estrutura do novo governo, no ciclo que se inicia após as eleições legislativas de 5 de junho.

mas tenho uma certeza: a de que não faltam condições de governabilidade aos partidos vencedores. muitos evocaram o facto de se ter atingido, muitos anos depois de sá carneiro, o objectivo ambicionado de uma maioria parlamentar, um primeiro-ministro e um presidente da república alinhados pela mesma lógica política – quebraram-se, finalmente, os ovos que os portugueses eram tidos por não querer colocar no mesmo cesto, tal como desapareceram também potenciais ‘forças de bloqueio’, sejam elas visíveis ou subreptícias.

contudo, não ficamos por aqui: pertencem ainda à mesma área política o presidente da comissão europeia (além de português e membro do partido mais votado) e a maioria dos comissários europeus; o parlamento europeu (pe) tem também uma maioria de representantes à direita e o ppe dominante é o grupo político em que se inscrevem os dois partidos que presumivelmente se irão coligar em portugal.

quanto ao conselho europeu, as lideranças socialistas limitam-se hoje – entre 27 membros – às lideranças espanhola e grega (esta algo fragilizada pela situação económica) e a participações em dois governos de coligação. acresce que o núcleo duro da zona euro e da união (alemanha, frança e itália mais o sempre influente reino unido) é dominado por governos daquela mesma coloração de direita.

poderia haver cenário político mais favorável do que o desta uniformidade? eis, pois, um mundo sem obstáculos partidários a bloquear, impedir, limitar… – nem em sonhos qualquer actor político ousaria pedir tanto!

dito isto, outras conclusões devem retirar-se deste cenário idílico para alguns. a primeira é a de que esta convergência, deitando necessariamente por terra muitas das desculpas e escusas auto-justificativas habituais na governação, implica que fiquem sob escrutínio críticas feitas, programas propostos e promessas de futuro.

uma segunda ilação decorre do estado deplorável em que hoje se encontra a união europeia em termos políticos, económicos e sociais, o que não pode deixar de se associar à supremacia ideológica à direita que já pré-existia a nível europeu; ou seja, uma situação dificilmente compreensível que não seja questionando essa mesma ideologia dominante…

é que, em boa verdade, o equilíbrio fino e subtil que foi durante décadas o motor da construção europeia – entre matrizes de centro-esquerda (social-democratas na concepção europeia) e de direita de cariz democrata-cristão – tem vindo a ser eficazmente substituído pelo monolitismo de uma nova direita, profundamente liberal, defensora de um estado não intervencionista e de uma crescente desregulação económica e social. assim, perante as forças da globalização e o poder descontrolado da finança internacional, a lógica política dominante na europa é hoje basicamente reactiva, demissionista e não estratégica.

voltando ao caso português, além de uma maioria, um governo e um presidente da mesma filiação partidária, teremos à frente da governação, pela primeira vez, um partido que se afirma claramente liberal, afastando-se de uma tradição social-democrata originária. será curioso observar como irão ser interpretadas certas recomendações ‘europeias’, como sejam, por exemplo, as de privatização de serviços de interesse geral e de empresas estratégicas, isto num país com um tão limitado mercado interno e de tão fraca tradição de supervisão?

veremos! mas, sendo verdade que, numa era de globalização, a esquerda europeia vai ter de revisitar a sustentabilidade do seu modelo social, é-o também que a direita o tenha de fazer em relação às consequências dos seus excessos liberalizantes. pessoalmente, espero bem que portugal não venha a ser mais uma triste ilustração desta realidade absurda em que a europa se está a transformar!