Passe menos

Esta crónica não é consigo. Quem compra o Sol não tem um «rendimento médio mensal bruto por sujeito passivo» de 545 euros, o valor que, em teoria, lhe daria acesso ao ‘Passe Social +’, em vigor em Lisboa e Porto a partir de 1 de Setembro.

escrevo ‘em teoria’ porque (1) a maioria dos passes de transporte público não terão ‘variante +’ e (2) porque o acesso exige prova de elegibilidade com comprovativo de irs e, ainda, um segundo documento obtido no site do ministério das finanças. tudo somado, não se esperam grandes filas em frente aos guichets.

à luz do objectivo anunciado, esta medida tem em estardalhaço o que lhe falta em eficácia. ela suscita, de resto, interrogações em cadeia. porque começa nos rendimentos médios brutos abaixo de 545 euros e não de 620 ou de 485? e porque, admitindo como escasso o recurso, se não optou por descontos menores, mas alargados a mais títulos de transporte? ignoro se os jornais fizeram este tipo de perguntas a quem de direito. gostaria de presumir que sim e, mais ainda, que obtiveram respostas convincentes. mas nada é menos certo.

seja como for, esta medida quebra o princípio de que o transporte público deve servir indistintamente o pobre e o rico. exacto: que a empregada doméstica de américo amorim e este, se o desejar, possam viajar no mesmo autocarro pelo mesmo preço. ou que os seus descendentes frequentem a mesma escola.

este ponto de vista não tem hoje muitos adeptos. pelo contrário, a moda garante que os serviços públicos se devem dirigir apenas aos que precisam. este é o ponto de vista oficial. aplica-se aos transportes, como ao gás e à electricidade e vai ser estendido em breve às taxas moderadoras do sns.

a criação de ‘passes +’ cria um princípio de divergência entre passes que é função dos rendimentos. agora, chegaram os ‘descontos +’; em janeiro do próximo ano, conte com os ‘aumentos +’, similares aos efectuados para o gás e a electricidade. mais tarde, teremos privatizações e novos aumentos. no fim, o estado ajoelhado pagará aos privados os ‘passes +’ e as perdas de utilizadores de transporte colectivo, como hoje paga à lusoponte os carros que por ela não passam. esta estrada só tem maus exemplos.

a experiência, em particular a norte-americana, mostra que serviços públicos para pobres são pobres serviços públicos, sem estímulos para a exigência e a qualidade. mas isto não é o fim da história. o que esta ‘desinteressada’ ajuda aos pobres esconde é a ‘taxa plana’, ou seja, que ricos e pobres paguem igual imposto. houve um tempo em que se dizia que deus olhava por todos. agora, os ricos pedem-lhe que cuide dos pobres. por desinteresse não deve ser.