O remédio cura?

Em entrevista recente (Expresso de 19.11.2011), Poul Thomsen (chefe da missão do FMI que integra a troika) ilustrou de forma clara um dos problemas mais graves que condiciona a gestão da crise na Zona Euro: a ortodoxia.

‘se a economia afundar mais, reconsideraremos o défice de 2012’ foi a síntese chamada a título, o que equivale a afirmar: ‘estamos disponíveis para reavaliar o calendário, nunca o remédio’. isto apesar da falência total do ‘remédio’ no caso da grécia e do contágio imparável a toda a zona euro das suas duas principais manifestações: a recessão económica e a gestão da dívida dos estados. pouco a pouco, ambas deixam de ser problemas de pigs (portugal, irlanda, grécia e espanha) para – alastrando à itália, bélgica, áustria, frança, etc. – ameaçarem a sobrevivência da zona euro. e foi só nesta última sessão plenária do parlamento europeu que, finalmente, durão barroso reconheceu que a crise era ‘sistémica’…

o dito ‘remédio’ assenta numa narrativa politicamente explosiva. primeiro, e com base no argumento ideológico de que a estabilidade de alguns estados (alemanha e poucos mais) é consequência da respectiva virtude no cumprimento das regras do pec, passou a inferir-se simplisticamente que a imposição rígida dessas regras aos incumpridores basta para que os seus problemas se resolvam e que um calvário de sanções e castigos são justos em virtude dos problemas que o seu laxismo causou à moeda comum.

assim se ignoram dados essenciais: desde logo que, num mercado e moeda únicos construídos, por opção política, entre desiguais, se agravam necessariamente os desequilíbrios entre centro e periferia; depois que, na construção do euro, os mecanismos de correcção desses desequilíbrios são insuficientes ou mesmo inexistentes, o que se torna particularmente penalizador quando a estrutura é abalada por uma crise.

austeridade sem crescimento como receita central não só tem atirado cada país para o seu próprio ciclo recessivo como, uma vez aplicada como norma num mercado integrado em que as trocas internas dominam, reproduz e amplifica entre países a espiral de recessão. no momento presente, o abrandamento económico alastrou-se e já ameaça a própria alemanha, talvez abrindo, nesse triste facto, a única janela de oportunidade para que se reveja a receita…

segundo ponto, ainda quanto ao ‘remédio’ e numa lógica sancionatória: são penalizados os bancos que cometeram a ‘leviandade’ de emprestar aos estados ‘pecadores’, quer pela via da perda de parte ou da totalidade do que emprestaram (os famosos ‘cortes de cabelo’, que na grécia serão de 50%) quer pela desvalorização dos seus activos materializados em dívida soberana (agora valorada ao preço de mercado); bancos mais frágeis terão maiores exigências em capital que, caso não sejam encontradas soluções próprias, recairão sobre os respectivos estados; resulta uma factura que se destina aos contribuintes daqueles estados que se arruinaram para salvar os bancos (caso da irlanda) ou dos que já estão tão debilitados que não conseguem financiar-se nos mercados e caíram sob a alçada da ‘troika’ (caso dos 12 mil milhões de euros no pacote de ‘empréstimo’ de 78 mil milhões de portugal). ou seja: na europa de hoje discute-se mais facilmente a falência de um estado do que de um grande banco, mas continua a esperar-se que os bancos financiem os estados e que os estados salvem os seus bancos!

haverá fim para esta espiral? parece difícil, seja por falta de ‘vontade política’ ou crença na ortodoxia dominante. o que é particularmente grave quando são os elos mais frágeis desta cadeia a colar-se à agenda dos que a determinam – em concreto, agora que tardia e relutantemente a comissão parece ir tomar a iniciativa de proteger a dívida dos estados com o lançamento de uma forma de eurobonds, irá o governo português manter a sua inexplicável posição de dizer a merkel que eles não são precisos? poderá o seu custo político ser hoje excessivo, mas essa é toda uma outra história que a ‘colagem à líder’ só agravou….

para quando o fim, se o houver, deste nonsense colectivo?