O homem que encontrou o tempo perdido

Assumimos que o Manoel ia ser o primeiro homem a não morrer”, disse John Malkovich (um dos ‘seus’ actores) em entrevista ao Diário de Notícias, verbalizando um sentimento que se consolidou face à constatação de que, após ter comemorado o centenário, o realizador continuava a filmar. Manoel Cândido Pinto de Oliveira morreu no Porto, em…

Ficou também conhecido por ter iniciado verdadeiramente a sua carreira “quando muitos já atingiram o seu crepúsculo”, como sublinhou o New York Times, num artigo de obituário – apenas o mais recente de uma longa lista de textos que dedicou ao realizador português. “Quase da idade do próprio cinema, Oliveira parecia muitas vezes um realizador fora do tempo, ou talvez de muitos tempos, um modernista do século XX atraído por temas e tradições de eras antigas. Era conhecido pelos filmes melancólicos e muitas vezes excêntricos sobre grandes temas como a natureza do amor e o sempre presente espectro da morte”, escrevia o NYT. No dia em que morreu, muitos se manifestaram tristes, órfãos e, ainda, chocados com a morte do 'Mestre'. Como se fosse esperado que não morresse. No entanto, a longevidade que lhe elogiavam considerava-a ele um feito menor, tal como disse em entrevista publicada no SOL em 2007, por ocasião dos seus 99 anos: “Viver com saúde e prolongadamente não é mérito do próprio, é um capricho do destino. Aquilo que eu faço, bom ou mau, é mérito próprio”. E mérito próprio seria virar o curso natural da vida, tendo acelerado a sua produção, cada vez mais reconhecida além-fronteiras também, à medida que envelhecia.

A sua vida foi recheada de improbabilidades e facetas surpreendentes, como nota Rute Silva Correia, autora da biografia que a Oficina do Livro lançou ontem, Manoel de Oliveira – O Homem da Máquina de Filmar. “Viveu mais de um século e fez uma série de coisas antes de se dedicar a 100% ao cinema. Pouca gente sabia que ele foi ginasta, aviador, corredor de automóveis…”, diz a autora ao SOL. Rute Silva Correia refere que a feitura do livro – uma súmula organizada por décadas – não foi fácil, uma vez que o realizador, ainda obcecado com a ideia de continuar a filmar sem perder tempo, “já não tinha saúde nem paciência para dar entrevistas”. A compilação seria feita sobretudo com fontes documentais e entrevistas publicadas bem como com a colaboração de Teresa Meneses, a protagonista de Francisca. Na véspera de o realizador morrer, o livro, cuja ideia começara a germinar em 2011, foi concluído. “A 1 de Abril terminámos as últimas revisões”, revela Rute Silva Correia, também autora da biografia Maria Eugénia, a Menina da Rádio, sobre a popular actriz dos anos 40.

Manoel de Oliveira nasceu a 11 de Dezembro de 1908, no Porto, ainda durante a monarquia, o terceiro filho de Francisco José de Oliveira, industrial e empresário que além de uma fábrica de passamanaria viria a construir uma hidroeléctrica.

Como nota Rute Silva Correia, Manoel de Oliveira nasceu “um ano depois da ficção cinematográfica em Portugal” e quando, em 1927, nos Estados Unidos se estreou o primeiro filme sonoro, The Jazz Singer, Oliveira tinha 19 anos. Factos que dão a noção de como o autor de Aniki Bóbó é contemporâneo da criação do cinema como arte e como indústria. Seria a projecção no Porto, em 1927, do documentário Berlim – Sinfonia de Uma Capital, do alemão Walter Ruttmann, que faria o jovem Oliveira apaixonar-se irremediavelmente pelo cinema. Diz-se que a sua primeira obra, o documentário Douro, Faina Fluvial (1931) começou na altura em que viu estas imagens e teve uma espécie de epifania.

Juntamente com o irmão, Casimiro, e sob o pseudónimo Rudy Oliver, acabaria por matricular-se numa escola de actores no Porto. Mas seria o pai Francisco José a abrir as perspectivas para o cinema quando deu ao filho o dinheiro para a compra de uma máquina de filmar Kinamo. Manoel ainda ensaiava o seu futuro na figuração no cinema, no trapézio e no atletismo. “Sem o poder adivinhar ou, quem sabe, com a intuição dos visionários, o empresário apostava num investimento épico. Aos olhos do filho, a Kinamo parecia mais desafiante do que os números de circo no SCP, mais emocionante do que as corridas de ralis; o seu mistério era mais intenso do que o das 'meninas' mais ou menos desencantadas nas rondas pelos bares do Porto. Começava a aventura do cinema”, explica o texto de Rute Silva Correia. E a aventura começava depois de o jovem Oliveira já ser atleta destacado do Sport Club do Porto, onde se tornara campeão de salto à vara, e de as suas virtudes desportistas terem sido enaltecidas na estátua O Atleta, de Henrique Moreira, feita para o Vilanovense Futebol Clube e para a qual o seu corpo serviu de modelo. O jovem e belo Oliveira, filho da alta burguesia, era conhecido no Porto e mais tarde, em 1933, o seu porte levá-lo-ia a interpretar um galã no famosíssimo filme de Cottinelli Telmo, A Canção de Lisboa, ao lado de Vasco Santana, António Silva e Beatriz Costa. Não foi, no entanto, um actor convincente e não reincidiu.

Seria por acaso que a sua vida se cruzaria com a de António Lopes Ribeiro, então o realizador institucional do regime. Este, ao ver num laboratório de Lisboa a película por revelar que Manoel de Oliveira tinha filmado no Douro e montado numa mesa de bilhar, sugeriu ao jovem cineasta amador que terminasse a fita com urgência para a apresentar no V Congresso Internacional da Crítica. A história da recepção de Douro, Faina Fluvial é mais do que conhecida. O público ofereceu-lhe uma valente pateada, descontente com as imagens da gente pobre e descalça. Tanto que o dramaturgo italiano Luigi Pirandello, que apreciara a obra, ironicamente perguntava se em Portugal havia o uso de aplaudir com os pés. Muitas décadas seriam precisas para Oliveira conseguir a consagração, mas nunca teria a unanimidade. Ainda hoje o seu cinema, teatral, encenado, grandiloquente, de grandes planos fixos e actores inexpressivos que debitam diálogos para a câmara, é genial para uns, entediante e absurdo para outros.

Nos últimos anos de vida, a consagração seria feita também em títulos honoríficos, nos prémios e nos múltiplos festivais que calcorreou. Em 2004 recebeu o Leão de Ouro de carreira do Festival de Cinema de Veneza. Recebeu a Palma de Ouro em Cannes, em 2008, também pela carreira. Em 2010, a intelectual New Yorker considerou O Estranho Caso de Angélica como um dos dez melhores filmes do ano. O Le Monde e os Cahiers do Cinéma falavam do génio de Oliveira. Mas, como disse o cineasta ao SOL, o que procurou foi, sobretudo, “tornar as coisas profundas um pouco mais claras”.

Oliveira realizou a sua primeira longa metragem após uma carreira longa e de sucesso como piloto de ralis, vários documentários estreados e já casado com Maria Isabel Carvalhais – a sua única mulher e mãe dos três filhos. Aniki Bóbó foi estreado em 1942 e é ainda hoje recordado como um manifesto sobre a candura da infância. Produzido por António Lopes Ribeiro, não teve no entanto sucesso comercial. E Oliveira submerge nos negócios de família e trata da quinta do Douro, da família da mulher. Em 1963 o documentário Acto de Primavera, sobre uma cena da Paixão de Cristo, leva-o a ser detido durante dez dias pela polícia política de Salazar, a PIDE. Só nas vésperas de o regime terminar, e graças ao apoio da Fundação Gulbenkian, consegue realizar a longa metragem O Passado e o Presente (1972). Foram décadas em que reflectiu, distante das câmaras.

Só a partir de 1974, quando já contava mais de 65 anos, a carreira de cineasta disparou. Em 1978 filma em episódios para a RTP Amor de Perdição a partir da obra homónima de Camilo Castelo Branco. Transmissão televisiva que recorda com um elucidativo “em Portugal caíram-me em cima”.

A partir de 1981, com Francisca, e durante 20 anos, dá-se a associação fundamental com Paulo Branco, o produtor já com um pé em França, e que lhe conseguiu financiamentos lá fora, presença nos festivais e nos jornais estrangeiros e contratos com estrelas internacionais. Começa um longo período em que Oliveira faz filmes uns atrás dos outros. Até morrer, faria mais 26 longas metragens, desde grandes produções como Le Soulier de Satin, de 1985, um drama em 410 minutos, a partir da obra de Paul Claudel, até Cristóvão Colombo – o Enigma, de 2007, para o qual o realizador encontrou grandes dificuldades de financiamento e no qual ele e a mulher participam como actores. E fazem-no porque dá jeito Oliveira interpretar o neto, Ricardo Trêpa, 40 anos mais velho, e para poupar dinheiro. Ricardo Trêpa, tal como Leonor Silveira, descoberta em Vale Abraão (1993), são actores fetiche de Oliveira, dentro de uma família que inclui ainda Luís Miguel Cintra e Diogo Dória.

Foi também durante o período de colaboração com Paulo Branco que as estrelas internacionais afluíram aos filmes de Oliveira. O Convento da Arrábida, em Setúbal, recebeu John Malkovich e Catherine Deneuve para as filmagens de O Convento (1995). Mais tarde viriam Michel Piccoli e Marcello Mastroianni e de novo Deneuve e Malkovich para Um Filme Falado em 2003. E a musa italiana Claudia Cardinalli e Jeanne Moreau em O Gebo e a Sombra (2012).

Pedro Borges, que acompanhou Oliveira enquanto trabalhou com Paulo Branco, recorda o cineasta como um homem de “extrema modéstia” que “sempre misturou grande exigência com grande generosidade”. Rute Silva Correia escreve no seu livro: “Dizem que, no plateau, Manoel de Oliveira dirigia absolutamente tudo. Nos figurinos, por exemplo, os ganchos do cabelo eram seleccionados por ele, os cenários medidos a dedo, os enquadramentos encenados com rigor de arquitecto. Se a selecção do actor era a primeira das suas grandes angústias, a segunda era determinar a posição da máquina. A terceira seria explicar essa escolha”.

Esteve sempre disponível para os filmes, “para os festivais, para entrevistas, para tudo, enquanto teve saúde”, refere Pedro Borges, que sublinha que agora, feitas as homenagens ao homem, é importante que a obra seja vista. Actualmente responsável pela Midas Filmes, proprietária pelo recentemente reinaugurado Cinema Ideal, no Chiado, Pedro Borges salienta:”A minha maior satisfação foi poder ter estreado a 11 de Dezembro, no aniversário de Manoel de Oliveira, o seu último filme, O Velho do Restelo, de 2014, com os documentários Douro, Faina Fluvial e os Painéis de São Vicente, de 2010”. “Isso foi um facto muito importante”, diz, adiantando que a Lusomundo, que detém os direitos dos filmes de Oliveira, está a promover em todo o país a exibição de filmes do realizador. O Cinema Ideal irá passar Aniki Bóbó e Acto da Primavera, ambos restaurados. “A grande lição que temos que recolher é que o Aniki Bóbó não teve sucesso comercial quando estreou, mas ao fim de 73 anos já deve ter feito muitos milhares de espectadores. O que temos que aprender é que os filmes são feitos para públicos de muitas décadas. Quantos sucessos comerciais de hoje são filmes que não vão contar nada no futuro?”.

É também o futuro da obra o que preocupa o director da Cinemateca Portuguesa/Museu do Cinema. José Manuel Costa sustenta que, ao contrário do que se poderia pensar, “a obra de Manoel de Oliveira sempre foi muito exibida nos cinemas, nunca foi inacessível”. E a Cinemateca, que “tem a missão de apresentar os filmes na sua forma mais pura, projectados numa sala de cinema, fez ao longo dos anos muitos ciclos completos da obra de Manoel de Oliveira e fará brevemente mais um”. O director da Cinemateca refere ainda “uma outra incumbência” da instituição, a de estrear a obra que o realizador fez em 1982, Visita ou Memórias e Confissões, com a indicação de só ser vista após a sua morte. Segundo José Manuel Costa, a exibição deverá acontecer ainda em Maio, estando a decorrer já conversas com a família. O filme, em que o realizador recorda uma última visita à casa onde tinha vivido até ao momento, encena partes da sua vida.”Não há revelações extraordinárias no filme. O facto de ele ter pedido para não ser visto tem apenas que ver com o pudor de uma pessoa de uma geração em que havia uma reserva muito maior”. Para José Manuel Costa, o filme “é um elo muito importante na obra. Muito bonito e muito coerente com a estética dele”.

Na passada segunda-feira, a Cinemateca prestou uma homenagem ao realizador transmitindo três dos seus filmes mais relevantes: O Passado e o Presente (1971), O Quinto Império (2004) e Francisca (1981). Além da presença de “pessoas que colaboraram de muito perto com ele”, houve muitas pessoas do público que “vieram levantar os bilhetes que pusemos à disposição para as três sessões”, conta José Manuel Costa.

Mas, reconhece o director da Cinemateca, há ainda muito trabalho a fazer e “dentro de pouco tempo será a altura, agora que a obra está fechada, de reavaliar a produção de Manoel de Oliveira”.

O que não se pode dizer, garante, “é que ele não foi reconhecido em vida. Há toda uma geração de realizadores do Cinema Novo que sempre assumiu a sua filiação em relação a ele e o tomou como um exemplo”. E há uma geração actual que também lhe presta homenagem.

Uma visão particular do mundo

telma.miguel@sol.pt