Uma visão particular do mundo

Será que as elites culturais de hoje aceitariam um atleta praticante de remo, um campeão nacional de salto à vara, um corredor automobilista, um boémio, enfim um playboy, como cineasta? Creio que não. Manoel de Oliveira foi tudo isto mas pertence a um outro tempo. Um tempo em que se escrevia Manoel e não Manuel…

Uma visão particular do mundo

Naquela época – tal como hoje seria – foi possível acontecer. O seu filme Douro, Faina Fluvial, considerado agora um marco histórico, foi arrasado pela crítica nacional. Mas na vida, nem a crítica nem as elites importam para o contributo que podemos dar. E o facto é que Manoel de Oliveira (que dirigiu o seu primeiro filme ainda nos anos do cinema mudo e o último nos anos do 3D), é sem dúvida o realizador português mais relevante da nossa cinematografia. Que não pertencendo a nenhuma escola, criou a sua própria escola e nunca se demitiu de agir, trazendo para o cinema ficcional português um olhar novo, um olhar documental, o olhar de quem nos questiona enquanto povo.

E filmes como Aniki Bóbó, Acto da Primavera, A Caça, Vou Para Casa, entre outros, fazem-nos perdoar trabalhos como Um Filme Falado e a sua irritante metáfora da Barbie árabe ou a frágil actuação de Ricardo Trêpa.

Ironia da vida é que quem tanto contribuiu para o prestígio internacional do cinema português tenha, sem saber e sem ser sua responsabilidade, contribuído para o divórcio efectivo dos portugueses com a sua própria cinematografia – consequência da piada de um humorista que nos anos 80 reduziu o cinema de Oliveira (leia-se cinema português) a um plano de meia hora de uma árvore, considerando-o um cinema chato e intransponível.

E foi assim que o cinema português virou cliché! Ironias da vida… Mas, já sabemos, a vida é injusta e os clichés sempre ganham.

Seja como for, orgulho-me de ainda fazer parte de uma época (prestes a acabar) que acreditou que a produção cultural e a memória histórica permitem a superação civilizacional do homem e que possibilitou que homens como João César Monteiro, Pedro Costa, Miguel Gomes ou Manoel de Oliveira partilhassem a sua visão tão particular do mundo.

Por isso, a imagem que perdurará é a do homem com 100 anos, que em Cannes, ao receber a Palma de Ouro pela sua carreira, empurrou com a bengala o anfitrião que o queria amparar.

Oliveira não quis amparo mas sim tempo. Tempo que afortunadamente lhe foi dócil mas que não diminuiu a sua urgência em querer falar.

*Realizador de José e Pilar