Pandemia

Hoje falo-vos de um adjectivo que detesto profundamente e que ouvi há bem pouco tempo, aquando de mais uma polémica cor-de-rosa que o público desvaloriza por tratar de questões da categoria dos pesos leves, mas que vejo sempre do ponto de vista sociológico, mais que não seja pela proximidade etária, e depois adentro-me.

Por causa das mais recentes afirmações que saíram algures e se tornaram virais num instante, referentes à ‘magreza extrema’ de Carolina Patrocínio, saíram em defesa da jovem muitos fãs que utilizaram o adjectivo que dá o mote a este texto. Um pouco por toda a parte pôde ler-se que «Carolina tem uma forma física ‘invejável’», pelo que seria muito remoto que a mesma sofresse de qualquer tipo de distúrbio alimentar: dada a sua paixão e dedicação ao fitness, a alimentação saudável e equilibrada é muito mais do que um complemento, é fulcral.

‘Invejável’. 

Fiquei a matutar sobre isto do ‘invejável’ e sobre a violência para o self que este adjectivo pressupõe. E pensei que, de facto, hoje em dia ouço e leio muitas vezes este adjectivo aplicado às mais variadas matérias, sendo que o descontentamento sôfrego provocado pelo facto de não possuir ou ser alguma coisa, é a causa subjacente e transversal a essa variedade de matérias.

Mas de onde vem a inveja? 

Da impossibilidade de ser ou ter qualquer coisa difícil de alcançar com os meios de que dispomos. Quer seja um corpo musculado, uma casa na Quinta do Lago, o rabo da J.Lo ou a mala Chanel que a Pepa tanto quis naquele malfadado endorsement da Samsung, a inveja remonta ao início dos tempos, quando começámos a ser gente, a reconhecer as nossas diferenças e a sublinhá-las. 

A igreja católica apostólica romana incluiu a inveja no compêndio dos sete pecados mortais; foi no entanto outra religião, o capitalismo, que despertou a inveja entre iguais. O meu spam de notícias, há muito controlado pelos meus gostos e interesses e coadjuvado pelo mui artificialmente inteligente Google, fornece de igual forma a polémica de Carolina Patrocínio ou o desastre no Mediterrâneo. E por opostas que pareçam estas notícias, ambas irrompem nas minhas notificações com o mesmo fervor e acabo por reconhecer que ambas são motivadas pelo mesmo sentimento de inveja, potenciado por esta religião em que vivemos, que fomenta a desigualdade e desperta esse extremismo.

Comecei a reparar que ‘invejável’ era um adjectivo muito comum no nosso tempo e percebi que retrata verdadeiramente aquilo que somos hoje. Com pleno acesso a todo o tipo de conhecimento, da mesma forma que sabemos que existem Ferraris quando podemos apenas ter um Fiat em segunda mão, também deveríamos ser educados, ou pelo menos sensibilizados, para treinar a capacidade de reconhecer o nosso sucesso, que por muito que possa parecer escondido ou inexistente, existe. 

É tipo Deepak Chopra para todos. Saber que temos, nós próprios, qualidades ou bens que, para terceiros, podem ser ‘invejáveis’, é provavelmente um dos maiores sintomas ou efeitos colaterais do capitalismo. Daí que a busca incessante por uma espiritualidade ascética, porém sem figuras para idolatrar, pareça uma das grandes procuras globais da fatia da humanidade que vive subjugada ao capitalismo. 

‘Invejável’ é a epidemia da minha geração, alimentada por uma série de ferramentas que veiculam uma ficção da vida real que tanto satisfaz como faz agonizar os seus protagonistas. ‘Invejável’ é a personificação da crueldade, a exacerbação do inconformismo, uma receita eficaz (como as do chef Silva) para o desastre individual. ‘Invejável’ tem tanto de negativo como de horrível e também de tirano. É o adjectivo das ditaduras invisíveis e do tão temido normcore. 

Daí que quando finalmente vi a fotografia da discórdia e não consegui compreender a polémica do ‘invejável’, pensei para com os meus botões que não invejava nada do que o corpo de Carolina simbolizava, pelo que até pensei, género consultório da revista Maria, ‘serei normal?’. 

Amanhã celebra-se o 1.º de Maio, e isto tem mais a ver com a luta de classes e com o proletariado do que o muito do que irá ser dito nas celebrações solenes do mesmo.

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