A nossa costa começa aqui

O céu está carregado. Deslumbro-me com os degradés de cinzento que anunciam chuva. Respiro sofregamente enquanto caminho em direcção ao meu repouso: o ar é denso e custa a entrar pelos pulmões. Trago um saco com roupa, o computador, a máquina fotográfica, Moleskines e um bater especial do coração.

No interior do farol de Montedor ouve-se o cair das ondas. O vento passa de esguelha, como uma serpente, por entre o gradeamento que adorna os muros exteriores, e os pinheiros lá fora ondulam como searas.

Apesar da chuva, a viagem está a começar bem.

Atirei para cima da cadeira a roupa molhada, que fumega à medida que vai enxugando. Consulto os sites de meteorologia. Amanhã o dia vai estar soalheiro e o mar amansa.

Anoiteceu. Da janela vejo apenas o feixe de luz que fura a noite tempestuosa. Este foi um dos oito faróis mandados construir por Júlio Zeferino Schultz Xavier. Em funções desde o dia 20 de Março de 1910, é o farol mais a Norte de Portugal e faz-se ver a 22 milhas náuticas. Antes disso naufragaram por aqui vários navios, o que explica o facto de chamarem 'Costa Negra' a esta zona.

Acordar com o mar ao ouvido

O despertador toca às sete da manhã. Vou às apalpadelas na escuridão cerrada, descalço sobre o soalho, até abrir as portadas de madeira. Entra-me pelos olhos a luz da manhã. Limpo a condensação da janela num gesto único para ter o mar aqui dentro. Tomo um duche, bebo chá, como torradas com vista para o Atlântico. Paro de mastigar para trocar o barulho do pão torrado dentro da minha cabeça pelo cantar do Oceano.

O granito que dá corpo à aldeia de Montedor faz-me pensar por instantes que estou no cimo de uma serra, bem longe da costa. As ruas são estreitas. Um rebanho de cabras pasta na vegetação que se estende até ao areal. Meto conversa com a velha pastora. Esboça um sorriso quando me diz que nunca fez vida à custa do mar. Os pais tinham gado e ela seguiu-lhes os passos.

A areia da praia de Fornelos, no promontório de Montedor, é branca e fina. Se quiser, consigo fazer um enquadramento da foto para parecer que estou nas Seychelles. Porém, qualquer olhar mais atento dará conta de que ao fundo está o Atlântico, o mais bravo oceano do planeta Terra.

No tempo do bacalhau

O senhor Alfredo Presa é de Vila Praia de Âncora, bem perto de Caminha. Tem 79 anos. Faz parte das várias gerações que participaram na Faina Maior, nome atribuído à pesca do bacalhau. Naquele tempo eram muitos os portugueses que se aventuravam  nas águas geladas do Atlântico. A maior percentagem era de Ílhavo, por causa da fama de serem bons marinheiros e construtores de barcos. Terei a oportunidade de vos falar mais a fundo sobre este tema numa das crónicas sobre esta viagem.

“Fui com 16 anos. Quem ia para o bacalhau livrava-se da tropa. Saíamos de casa e voltávamos seis meses depois. Era assim naquele tempo”, recorda o senhor Alfredo. “Apareciam aqui para recrutar pessoal para os bacalhoeiros. Partíamos de  Lisboa com um saco cheio de roupa. Andei no Santa Maria Madalena e depois no Ave Maria. Fui para a Terra Nova [Canadá] e outras vezes para a Gronelândia. Era uma vida difícil. Às vezes trabalhava 40 horas sem dormir. Comi tanto peixe salgado e frito, com o pão que era cozido no navio, que você nem queira saber!”.

Este idoso fala de tudo com entusiasmo. Conversamos à entrada de uma garagem com vista para o forte de Vila Praia de Âncora. Uma nesga de sol aquece-lhe as mãos que remendam com mestria as redes esverdeadas estendidas na garagem do prédio à beira-mar construído.

“Cada um tinha um dóri [pequeno barco de madeira, geralmente de eucalipto, com cerca de 4,5 m de comprimento e 1,20 m de largura, muito usado na pesca do bacalhau] que era largado ao mar. Chegavam a ser 50 a 60 dóris espalhados nas redondezas do barco-mãe. Eram numerados e sorteados no início da viagem. Só não existia o número 13. Dava azar. Tínhamos de ter cuidado por causa do nevoeiro. Se nos afastássemos muito, corríamos o risco de perder de vista o navio. Ui!! Isso aconteceu com alguns. O mar ficou com eles”.

A captura do peixe fazia-se com recurso ao 'aparelho', um fio de anzol com isca de cavala e sardinha. “Às vezes vinha peixe vermelho que nós chamávamos de comunistas, mas também arenque e gatas. Ganhávamos ao quintal [cem quilos] e, por isso, quanto mais pescássemos, mais ganhávamos. Cheguei a fazer 7 a 8 quintais por dia. O primeiro andar da minha casa foi construído com dinheiro que ganhei nas pescas”. Alfredo também trabalhou em navios alemães. “Nesses a comida era boa. Tínhamos horários melhores e ganhávamos mais”.

A conversa termina com um brinde de cor tinta. Pago eu o copo de vinho para depois seguir viagem.

A costa a Norte começa aqui

Dou por mim no mercado de Caminha. A Galiza fica do outro lado do rio Minho. Há barcos atracados na margem portuguesa sujeitos ao temperamento oceânico do rio. Adormecem todos os dias na corrente de água doce que se espreguiça pelo mar adentro, depois das chuvas intensas de Inverno. É essa água doce que orienta a subida das lampreias contra a corrente do rio para desovar – muitas acabam por encontrar a 'sepultura' nas bocas dos seus apreciadores. Actualmente são cerca de 290 pescadores que as apanham, cinco vezes em cada maré, de Janeiro a Abril.

No largo em frente ao mercado vende-se roupa, legumes, panelas e enchidos, com o rio Minho a servir de pano de fundo. Aqui dentro vende-se o peixe fresco que as redes capturaram. Salta à vista uma caixa com água que mantém as lampreias vivas. Estes gordos anádromos não se comem ao preço de um hambúrguer de franchising. Ainda assim, agora custam 25€ a unidade, quase metade do preço outrora praticado.

Na máquina fotográfica levo um retrato da senhora Ana da Quinta. Veio ao mundo em 1941 e cresceu com o peixe na mão. Vende-o com a filha e a neta. “Já ando aqui há muitos anos. Queres ver como é que gosto de falar com os meus clientes? 'Ó amor, não queres levar este peixinho fresquinho'?”.

A neta formou-se mas, na ausência de emprego relacionado com o curso, rendeu-se ao comércio de peixe, enquanto espera uma resposta positiva a um dos muitos currículos que envia diariamente.

De avental ao peito e botins de borracha calçados, levantam-se todos os dias de madrugada para exercerem a profissão de peixeiras.

Está na hora de partir

Apanho boleia numa pequena embarcação atracada no estuário do rio Minho. Negoceio um valor simpático para ambas as partes. Não é comum pagar quando se anda à boleia, mas foi a única solução que encontrei hoje.

Entramos devagar no oceano em direcção a Sul. A água está gelada e o sol brilha tanto que me faz pensar que é Primavera. Vou sentado na meia-nau, a parte do casco entre a proa e a popa, com a mala da roupa presa entre as botas firmemente assentes sobre o convés. A máquina fotográfica está pendurada ao pescoço. O peito parece inchado, por causa do volumoso colete salva-vidas.

As gaivotas rondam a embarcação. São umas desavergonhadas, pousam onde bem lhes apetece. O seu grasnar mistura-se nas leves ondas que açoitam a temerária embarcação que risca a água com as hélices do motor. Deixo para trás o Monte de Santa Tecla (Tegra para os espanhóis). Tenho pela frente 943 kms da costa de Portugal Continental, que vou percorrer ao longo dos próximos meses.

O forte da Ínsua (palavra vem do latim e significa 'quase ilha') está a 350 metros da praia, rodeado de mar e acessível apenas por barco, salvo quando a maré baixa de forma anormal. Foi farol e convento de frades franciscanos e hoje está à mercê das visitas dos veraneantes. Dentro do forte, não se ouve o mar. Foi saqueado várias vezes. Certa vez, um milagre fez com que as ondas trouxessem de volta um altar roubado por piratas ingleses, que saíram daqui assustados por um fantasma. Devia ser enorme a bebedeira…

Vagueio pelos 400 metros de extensão da ínsua e sou saudado por um ostraceiro que, embora deva o nome ao facto de se alimentar de ostras, me pareceu estar a depenicar um ouriço-do-mar. Tem o bico e as patas com um tom laranja avermelhado muito intenso. Ao sobrevoar-me num golpe de asa perfeito, parece que me deseja boa viagem.

Volto à embarcação. À medida que vou passando a lente fotográfica pela costa, começo a desejar transformar algum do cimento em flores. Entre bonitos enquadramentos de areia fofa, vegetação  vigorosa e rochas esbeltas, emergem habitações ocupadas apenas umas quinzenas de Verão no ano inteiro.

“Quando quiser que eu pare, avise”, diz-me o comandante do barco, com uma voz que soletra muitos cigarros fumados na vida. Peço-lhe para desligar o motor. O barco baloiça como um berço. Até agora, passei o teste do enjoo. A bombordo vejo terra; a estibordo apenas o Oceano, que é de tal maneira belo que chego a imaginar que foi criado só para mim.