Miguel Gomes: ‘É como se tivesse feito o Star Wars de uma vez’

A trilogia As Mil e Uma Noites, sobre o desemprego e os anos da troika  em Portugal, está a fazer furor em Cannes.

Porque recorreu a uma equipa de jornalistas para desenvolver 'As Mil e Uma Noites'?

Para filtrarem a actualidade. Depois eu e os argumentistas escolhíamos os assuntos mais relevantes e a partir daí procurávamos fazer ficções. Por exemplo, soubemos pela equipa de jornalistas que o representante da troika falou uma única vez durante todas as reuniões. Todas as pessoas que participavam nas reuniões comentavam isso. No episódio dos 'Homens do Pau Feito' há um dos elementos da troika que não fala.

De onde surgiu essa ideia do 'pau feito'?

Todas as manhãs eram reservadas para a leitura dos jornais. Temos vários livros de artigos, recortes, anúncios… Uma das coisas que vimos foi um anúncio de um afrodisíaco. Pegámos no texto do anúncio e transformámo-lo em diálogo. 

Foi a partir desses recortes que partiu para a ficção?

Sim. A ideia era muito clara: trabalhar a partir de coisas que estavam a acontecer ou que apareciam nos jornais. Depois cruzávamos isso com a nossa imaginação. Foi assim que a equipa foi a Resende conhecer a dona do galo que foi posto em tribunal por cantar mais cedo do que deveria.

Quando surgiu a ideia para o filme?

Já durante o Tabu pensávamos em fazer o filme seguinte. O que aconteceu foi que a realidade em Portugal foi demasiado impositiva. Filmar em Portugal numa altura em que se passava algo tão grave levou a isso. Impunha-se testemunhar isso e não virar as costas.

Está algures entre o documentário e a ficção.

Sim, o que me interessa são as trocas entre o imaginário e a realidade. Acho que o mundo em que vivemos só pode estar completo se existir ao mesmo tempo a realidade e o imaginário das pessoas. Uma espécie de imaginário selvagem. No livro As Mil e Uma Noites, Xerazade tem de contar histórias ao rei na iminência de perder a cabeça. Por serem ficções tão delirantes, com génios e lâmpadas, achei que havia uma relação com o surrealismo de muitas histórias que se estavam a passar em Portugal. Apesar de parecerem coisas opostas havia algo que as unia.

Qual o significado deste projecto?

É como se tivesse feito o Star Wars de uma só vez. As Mil e Uma Noites são um único filme. E estou muito contente por estar a ser bem recebido.

Quando subiu ao palco para apresentar o filme terminou dizendo 'E agora, let's rock and roll !'. O que quis dizer com isso?

O filme tem esse lado mais selvagem, mais rock and roll. Não quer ser diplomático. Não tem qualquer problema em partir os pratos da cozinha. Mas também não quer ser militante e histérico…

Há quem ainda o veja como um crítico de cinema, um intelectual. Essa imagem corresponde à realidade?

É verdade que fui crítico de cinema, mas parece-me que isso não tem de ser um estigma social. Não me sinto um intelectual, mas também não tenho desprezo por intelectuais.