O preto e branco não é coisa do passado

Desde os anos 1960 que a maior parte dos filmes passou a ser produzida e exibida a cores, mas o preto e branco nunca despareceu completamente do mapa. A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, ou o mais recente O Artista, de Michel Hazanavicius, provam que a linguagem ainda pode ser usada com sucesso comercial. 

Um dos objectivos do festival internacional Black & White – cuja 12.ª edição começou quarta-feira e termina no domingo – é mostrar que um filme a preto e branco não tem de ser aborrecido. Até pode ser visto a comer pipocas, como qualquer blockbuster. O certame, que se realiza na Universidade Católica do Porto, é o único no mundo exclusivamente dedicado a esta estética, garante a organização, mas a produção mundial é mais do que suficiente para alimentar uma secção competitiva recheada. De quase 200 filmes submetidos, foram seleccionados 26, de 13 países, entre ficção, documentário, animação, cinema experimental e vídeos musicais. O director Jaime Neves julga até que o preto e branco está de novo na moda.

“Para um jovem entre os 15 e os 20 anos, um filme a preto e branco é uma novidade. É o mesmo que para os mais velhos ver pela primeira vez um filme a 3 dimensões. Esta é uma estética que está a voltar ao de cima e basta olhar para a publicidade, nomeadamente de perfumes e bebidas, que a usa tanto”, frisa o responsável pelo festival. A esse argumento, o também docente da Escola das Artes da universidade junta outro: duas marcas conceituadas, a Leica e a Sony, criaram recentemente duas câmaras de cinema digital que só captam a preto e branco. “Não somos um festival de homenagem a uma estética antiga, mas sim voltado para o futuro. Desafiamos os autores a utilizar as câmaras mais recentes, o 4K e o cinema de altíssima definição para a reinventar”, avisa Jaime Neves.

Esta edição do Black & White apenas recebe, aliás, obras produzidas nos últimos dois anos, com uma duração máxima de 20 minutos. Há quatro filmes portugueses numa competição que envolve propostas vindas de paragens mais longínquas como o Peru ou o Brasil. “No nosso primeiro ano, em 2004, as pessoas tinham medo que o festival não vingasse. Agora nem temos uma grande necessidade de promover a fase de submissões, porque já somos bastante conhecidos no meio. Fora de Portugal, quando falo do Black & White, respondem-me logo que é 'aquele festival do Porto', por ser tão específico”. A própria Academia de Hollywood deu um empurrão ao preto e branco, voltando a nomeá-lo (Nebraska, de Alexander Payne, em 2014) e a premiá-lo (O Artista, em 2012). Jaime Neves descreve a estética como “charmosa, objectiva e precisa”, numa época em que, devido ao “excesso de informação”, “o eficaz é o simples”. “O preto e branco limpa a imagem e envolve o espectador, que tem de a colorir com a imaginação”, resume.

Boxe e um filme-símbolo

O Black & White – que inclui também secções competitivas dedicadas à fotografia e ao áudio – surgiu com um enfoque que, propositadamente, o diferencia dos maiores festivais realizados a Norte: o Fantasporto e o Curtas de Vila do Conde. Porém, o principal objectivo era mesmo projectar a licenciatura em Som e Imagem, cujo mestrado tem quatro áreas de especialização que se cruzam: animação por computador, arte multimédia, cinema e audiovisual e design de som. Em 2014, a escola foi premiada no Fantasporto como a melhor de cinema do país e vários filmes produzidos na Católica e/ou por ex-alunos têm sido galardoados.

O mais mediático será Píton, que venceu o grande prémio do Black & White de 2011 com o retrato da vida e do treino de Juliana Rocha, uma pugilista portuguesa então com apenas 18 anos. O documentário – que pode evocar Belarmino,  de Fernando Lopes, ou Touro Enraivecido, de Martin Scorsese – teve a autoria de André Guiomar, que aponta como principal razão para a escolha do preto e branco “o contraste que queria conseguir na personagem da Juliana”, dentro e fora do ringue. Por outro lado, a opção mostrou-se “mais eficiente, simples e rápida” para obter o estilo pretendido. E não foi esse facto que impediu a obra de receber outros galardões e menções honrosas, incluindo o primeiro lugar no NY Portuguese Film Festival, nos Estados Unidos.

Píton tornou-se uma espécie de símbolo do festival e da própria Escola das Artes, já que foi produzido como projecto final de curso. “Agrada-me que isso possa fazer com que alguns alunos tenham a esperança de um dia vencer também festivais internacionais, tal como eu tinha quando me sentava no auditório Ilídio Pinho e via os realizadores no palanque”, reconhece André Guiomar em declarações a partir de Moçambique, onde se encontra a desenvolver uma série documental em torno da Guerra Civil e do Acordo de Paz que a encerrou. Aos 26 anos, está ainda ligado à Cimbalino Filmes, uma produtora incubada na própria Católica, e concorre à edição 2015 do Black & White com o videoclip de 'Dog', uma música dos portugueses CineMuerte.

Uma escola que não dorme

Outro realizador saído da Escola das Artes é Rodrigo Areias (autor do western Estrada de Palha, de 2012), que até continuou a procurar a infraestrutura técnica da academia para realizar alguns trabalhos, como revela a directora Laura Castro. O Velho do Restelo, último filme de Manoel de Oliveira – que era presidente honorário do Black & White – foi igualmente ali pós-produzido. Estas são duas longas-metragens a cores – na verdade, apenas uma minoria dos trabalhos aqui realizados são monocromáticos. “Mas no pós-festival os alunos só pensam a preto e branco, especialmente os do primeiro ano”, nota Jaime Neves. Quem também não seguiu a via do preto e branco foi José Maria Richardson Rebello, que criou quase sozinho e a custo zero a curta de animação Ptolmus, único filme português a ser admitido no Festival de Animação de Annecy, o maior do género no mundo.

Com apenas 24 anos, Richardson Rebello já dá aulas de animação em 3D na escola em que completou o mestrado e foi um dos guias do SOL pelos calabouços da instituição, no piso -2, onde se encontra um estúdio de televisão e várias salas de aula. Na sala de animação 3D, as paredes estão cheias de storyboards e estudos de personagens em vários ângulos, para depois serem desenhadas em computador. “Fazem-se aqui muitas noitadas, mas são noitadas felizes”, garante o jovem professor e realizador. O Black & White 2015, cujo programa está concentrado no auditório da Católica do Porto, na Foz, há-de inspirar muitas mais.