‘Uma questão de soberania’

A combinação das entrevistas do Secretário de Estado da Energia (SEE), Henrique Gomes (Jornal de Negócios, 9 de Janeiro), e de Eduardo Catroga (Expresso, 14 de Janeiro), ambas a propósito da venda de 21,35% da empresa eléctrica nacional à China Three Gorges (detida a 100% pelo Estado chinês, como é sabido), ilustra aspectos talvez bem…

à afirmação do entrevistador de que os consumidores de electricidade estão hoje a pagar mais, quer pelo aumento de tarifas quer também pela subida do iva, o governante contrapõe que ‘estamos a trabalhar intensamente na estratégia para a energia’, que ‘esta estratégia será conhecida durante o próximo mês’ e que ‘medidas mais estruturais só terão efeitos para o próximo ano’. mas reconhece que ‘os preços [da energia] estão a um nível já demasiado elevado’ e que ‘a energia está a prejudicar a indústria exportadora, ao afastar-se perigosamente dos preços espanhóis’. reconhece, ainda, ‘a oposição dos produtores às medidas’ [de revisão de tarifas e de contratos pelo governo], considerando, embora, tal oposição ‘natural’, e afirma explicitamente que ‘ao excessivo poder de mercado e de influência da edp o estado tem de impor o interesse público’.

pergunto: agora que um dos accionistas principais da edp é o estado chinês, com que instrumentos se prepara o governo para intervir, rever tarifas, renegociar contratos e reavaliar subsídios de modo a ‘pôr a energia ao serviço da economia e das famílias’? a resposta é simples de encontrar nas palavras cristalinas do see: ‘é uma questão de soberania’. aliás, quando interrogado sobre se os pressupostos no caderno de encargos da privatização previam esse tipo de alterações das condições de mercado, aquele responsável responde que ‘no acordo da privatização há um capítulo de riscos e incertezas que salvaguarda genericamente o risco de uma alteração legislativa’, mas que há outras vias para além da negociação, na medida em que ‘a assumpção do estado como regulador é uma decisão unilateral e soberana’. talvez seja, mas…

mas talvez também, como diz eduardo catroga, uma vez que ‘ficámos nas mãos dos credores’, não estejamos em condições de decidir e manter uma participação do estado nas grandes empresas (‘estruturantes’), como o próprio assume que defendia em 1995 e em 2000. e a grande mensagem de que os tempos são mesmo outros vem logo a seguir: questionado sobre a provável revisão, por parte do governo, dos subsídios pagos pelo estado à edp, catroga responde com a clareza que se lhe tornou habitual: ‘o governo perdeu a oportunidade de redefinir o quadro regulatório antes da privatização. devia tê-lo feito. agora vem dizer que pode vir a alterar o quadro regulatório. se já havia essa intenção, por que não o fez antes da privatização?’ e continua: ‘passados 15 dias da venda, vem dizer em entrevista que aquilo que queria fazer não fez, mas agora vai fazer. devia ter dito logo no caderno de encargos para que o comprador tivesse isso em consideração.’ pois é, catroga tem razão! até porque não representa o interesse nacional mas só, como ele próprio recorda, ‘fui indigitado chairman da edp’…

a procissão ainda vai no adro! estamos a falar de electricidade, um bem que, na europa do século xxi, tem de estar acessível a preços razoáveis em todo o país, dele dependendo a qualidade de vida dos cidadãos e a competitividade das empresas. em portugal, o serviço tem regime de quase monopólio, o que, somado ao seu carácter de bem essencial, confere a quem o fornece um poder de mercado extraordinário. depois da privatização, tal poder está nas mãos, entre outros, do estado chinês. quando o interesse nacional não coincidir com o interesse desta poderosíssima empresa, quem defenderá o ‘interesse público’? quanto custará essa defesa? que meios técnicos e financeiros terá o estado ou o regulador português para afrontar em tribunal uma empresa com este perfil?

o mais certo é que, muito provavelmente, este conflito nunca venha a ocorrer, pelo menos com o actual governo. o perfil dos novos indigitados para o conselho geral e de supervisão da edp permite ao seu futuro presidente classificar a entrevista do secretário de estado da energia como ‘infeliz’ e não faltará muito tempo para que governo e regulador deles ouçam apenas um seco ‘porque não te calas’? e, a agravar tudo isto, o mesmo grau de impreparação (ingenuidade?) espera outras empresas que já estão na calha, da ren à águas de portugal… pobres cidadãos!