Memórias da vida do mar

De Póvoa de Varzim a Vila do Conde é um palmo e as Caxinas. Noutros tempos, não existia esta estrada à beira mar a unir os dois concelhos. O tempo soprou as areias e o progresso suspirou cimento. Aqui cresceu esta comunidade. Os azulejos garridos, com padrões diversos, são a pele das ruas das Caxinas.…

O cão Bobby

Junto do Memorial aos Náufragos, em Caxinas, que homenageia todos os pescadores que morreram no mar, reúnem-se reformados da pesca. O jogo de cartas une-os todos os dias com derrotas e vitórias. Esses dissabores não são estranhos na sua vida. Foram mais que os dedos que têm no corpo, os embarques que fizeram para se governarem. O regresso não era um dado adquirido.

Atraquei na Póvoa de Varzim e por ali fiquei vários dias, de máquina fotográfica ao peito, para denunciar as minhas intenções. A população é reservada no primeiro contacto. Para evitar erradas leituras sobre mim, demonstro que os quero fotografar. Acabei por os trazer também no coração.

Aproximei-me de caxineiros de gema que me contaram histórias avulsas da sua vida. Um deles foi o senhor Duarte. Já soprou 67 velas e conta-me com entusiasmo: “Em finais de Março, Abril,  era quando os navios saíam para a pesca do bacalhau. Quanto mais pescássemos, melhor. Tínhamos de fazer vida de escravo. Os navios de arrasto eram mais potentes e melhores. Já havia casas de banho, não precisávamos de sofrer. Nos outros, quase que morríamos afogados quando entrávamos”, diz-me ele com uma gutural gargalhada.

“Eu nasci em Matosinhos e depois, não sei se foi um mês, um mês e pouco, vim para aqui. Vivi numa casa que agora é um ginásio. Essa casa era do meu avó. Toda a minha família era ligada ao mar. Tenho um irmão que trabalha em Portimão. Tenho outro que deve estar pelos Açores ou Madeira, ao espadarte. Tenho outro que está em Aveiro, outro morreu e outro foi operado aos intestinos e nunca mais foi o mesmo. Nós somos seis rapazes e cinco raparigas. Estamos  10 vivos. Aqui as famílias são muito grandes. Há delas com 18 filhos. Parece que somos todos primos. Mesmo sendo muitos, cabíamos todos em casa. Era como o carapau, cabe sempre quando bem arrumadinho” .

O certo é que não foi nada fácil chegar à vontade destas pessoas para me falarem sobre a vida que fizeram no mar. Primeiro por serem recatados no primeiro contacto. Depois, Caxinas tem sido sobejamente procurada por estudantes, jornalistas, historiadores e afins, para realizarem trabalhos sobre esta comunidade. Sinto-me mais um, neste momento. Porém, considero as várias entrevistas que fiz  um complemento à extensa viagem que me encontro a fazer ao comprido da orla marítima portuguesa.

Puxando conversa à velocidade do sol que começava a aquecer, o senhor Duarte continuava a contar-me: “Se você não conseguisse pescar bacalhau e se não conseguisse arranjar outro navio, tinha de ir à tropa. Se fosse bom a pescar, livrava-se de ir para as colónias combater. Eu não tinha coração quando andava lá. Esquecia tudo. Só pensava em apanhar qualquer coisa e sobreviver. Fazia de conta que não tinha ninguém”.

“Normalmente os navios chegavam no dia 12, 13 de Outubro a Portugal, mais tardar a 15. Deixavam-nos em Aveiro e depois voltávamos de autocarro para Caxinas. As famílias organizavam-se e iam lá buscar-nos. Havia gente que não era só daqui. Uns vinham da Póvoa, de Aveiro, da Nazaré. Chegámos a levar dois rapazes de Setúbal”. 

Entretanto íamos mudando a orientação dos nossos olhares e o senhor Duarte apontava para a praia: “Antigamente, junto à Pedra Santa, afundavam-se muitos barcos. Batiam ali e pumba!!!! A gente gritava "Arriba, arriba… mas alguns não se escapavam.  Às vezes íamos para a Póvoa, logo ali, quando se pescava sardinha a mais, para evitar sobrecarregar as canastras das mulheres. Também íamos para longe. Cheguei a ir para Norte, Sudoeste. Cheguei a ir para lá de Espinho. Mas em barcos a motor.

Caxinas está muito diferente. Os mais antigos vão desaparecendo. “Alguma malta mais nova não quer trabalhar. Querem é chicharro ou charro, ou lá como se chama isso. É uma podridão em alguns casos. Alguns andavam aí à procura de ferros, metal, alumínios nas lixeiras. Até as tampas de saneamento já roubaram. O meu pai ainda está ali. Eu tinha uma mala com todo o equipamento para a pesca do bacalhau. Tudo guardadinho. Tinha a bússola, o bule, pingalins, pinos,  tudo o que pertencia ao dóri. Apareceram umas miúdas que queriam fazer um trabalho para a escola e nunca mais me devolveram aquilo”.

“Mas deixe-me falar-lhe do Bobby, que era um cão que nos acompanhou durante muitos anos. O gajo era tão esperto que às vezes ficava em terra e ia ter connosco. Entrava pelo mar e chegava a nado.  E olhe que ajudava-nos bastante. Quando o nevoeiro ficava cerrado, o farejo dele apontava-nos a terra. Uma vez o vento batia contra o barco e baloiçava-o ao ponto de a sardinha já pescada, cair. Deixei de ver o cão. Eu gostava tanto dele que gritei para o meu pai 'Ou paras para eu encontrar o Bobby ou meto o barco ao fundo e morreis todos. Onde está o cão?? O cão tem de aparecer. Bobby, Bobby!!' O cão estava agachado debaixo da borda do barco. Meteu-se lá para dentro para se proteger do mar. Só quando começou a sacudir-se é que deram por ele. 'O cão está vivo!! Vamos embora!!'“.

Bind' ó peixe

A expressão 'bind' ó peixe' dá nome à Associação Cultural criada em Caxinas e Poço da Barca, por gente que quer preservar a identidade deste lugar. Considero importante salientar o nome da associação, para inspirar outros interessados em valorizar e preservar o bem público material e imaterial que temos no país.

Tive a oportunidade de conversar largos minutos com um dos fundadores, que curiosamente colabora num outro jornal nacional. Ele mesmo se disponibilizou a facultar-me todas as informações que tivesse sobre o seu lugar. O orgulho que tem de ser caxineiro suplanta qualquer ímpeto de competitividade profissional. Concordamos naquela manhã que é crucial proceder ao registo das memórias vivas, para que não desapareçam para sempre, com  a chegada da noite escura do esquecimento.

A Igreja das Caxinas

Levanto-me muito cedo. Quero acordar com os caxineiros. São 7h30 da manhã. Dirijo-me a um dos poucos cafés já abertos e cruzo-me com gente que se dirige para a igreja que muitos chamam de ' igreja do barco'.  Não fico indiferente ao facto de madrugarem em nome do Senhor. É fácil compreender que a fé está presente na proa dos barcos dos pescadores portugueses. São muitas as embarcações que têm nome religioso. Elas fazem peito  à grandiosidade do oceano. É o recurso ao divino, para que traga todas as vidas a bordo, para junto dos seus que estão em terra.

Sobre mim desenha-se a sombra de um novo prédio construído mesmo ao lado da Igreja dos Senhores dos Navegantes das Caxinas. Era esta a obra polémica de que me tinham falado. Dizem que se encontra a menos de quatro metros de distância e que é uma ofensa para a população. Interfere pornograficamente com  o isolamento que consideram necessário existir na igreja, que é o orgulho da comunidade. Os abaixos assinados e a miríade de debates em assembleias municipais, revelam a fibra do caxineiro. Verga mas não quebra.

Terra de talentos

Quando cheguei a Vila do Conde confrontei-me com uma belíssima 'escultura ou pintura?' do jovem artista, mas já internacionalmente reconhecido, Alexandre Farto, que assina como Vhils.

Sobre a dura pedra que dá corpo ao molhe da Senhora da Guia, está bem vincada a face do escritor Valter Hugo Mãe. Nem as marés agitadas apagam este retrato que está ao alcance de qualquer pé que por ali passe. É profundo o olhar do escritor que pertence a este lugar.  Parece que o retrato surgiu no contexto do projecto cinematográfico de Miguel Gonçalves Mendes (autor de José e Pilar) e que se encontra a realizar neste momento o filme O Sentido da Vida. Atendendo ao número avultado de escritores associados a Vila do Conde, não fico indiferente aos futebolistas que deram luz aos relvados dos campos de futebol nacionais e para lá das nossas fronteiras. Destacam-se os futebolistas André, Paulinho Santos, Hélder Postiga, Fábio Coentrão e tantos outros. 

Alguém me dizia que as Caxinas eram como uma colmeia. Foi essa a sensação que retive. Há uma interligação entre os habitantes que parece alimentar um cordão umbilical invisível.  “Parecemos todos primos” – diz-me o senhor que está aqui sentado ao meu lado,  mesmo juntinho ao retrato.

“E digo-lhe mais: lembro-me de jogar futebol com o pai do Fábio Coentrão  quando atracávamos em St Johns. Improvisávamos um campo de futebol, mesmo ali ao pé do navio e ele dava bem nas vistas. Felizmente, o filho andou para a frente na carreira”.

Terminei o dia com a mochila às costas e a caminho de mais uma aventura pela costa fora.