O tesourinho encontrado

“Ou é melhor que o Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés) ou é a pior porcaria que alguém jamais enfiou numa máquina de projectar”. Foi assim que em 2009 Jerry Lewis se referiu a um dos filmes tabu da história do cinema, realizado por ele em 1972, nunca exibido e cujo rasto foi recentemente…

A informação estava contida a meio de um artigo sobre um grupo de fãs reunidos no Mostly Lost – um festival de cinema mudo que há quatro anos se repete numa sala de cinema em Packard Campus, perto de Washington D.C., onde se situa o arquivo de filmes da Biblioteca do Congresso. O jornalista do Los Angeles Times referiu que o curador de cinema daquela instituição norte-americana contou aos participantes do festival, numa visita aos cofres onde se preservam as relíquias do século XX, que num deles repousa a fita virgem de The Day The Clown Cried – o filme de Jerry Lewis, em que o cómico encarna a personagem de um palhaço alemão que diverte as crianças antes de serem conduzidas às câmaras de gás.

Logo à partida se percebe que o tema, menos de 30 anos após o fim da II Guerra Mundial, não seria fácil de gerir publicamente. Assim que terminou a produção, o filme tornou-se lendário para alguns, e caiu no esquecimento para muitos.

E agora, soube-se, a Biblioteca do Congresso adquiriu o polémico filme, mas não o disponibiliza para consulta pública, nem sequer consta nas muitas entradas sobre aquele que é um dos mais populares actores cómicos do século XX. Nos próximos dez anos não o deverá exibir. Se alguma vez o fizer, o mais provável é que o seu realizador, actualmente com 89 anos, já esteja morto.

O próprio Jerry Lewis não concretiza se gosta ou não do filme, se quer ou não vê-lo a sair da caixa. O actor sentiu o desconforto logo que o argumento lhe foi proposto. Milton Berle e Dick Van Dyke já se tinham recusado a participar no projecto. Primeiro assustado com a ideia de pegar em material tão explosivo, Lewis tomou a decisão, de que se arrependeu pouco depois, de dar vida ao palhaço Helmut Doork, mas dando uma volta ao argumento de Joan O’Brien e Charles Denton.

A própria filmagem foi repleta de peripécias. O produtor ficou sem dinheiro e Lewis pagou do próprio bolso para filmar todas as cenas. De forma a ver o trabalho concluído fez uma cópia de autor e, em 1973, chegou a anunciar que a obra estrearia no Festival de Cannes. Após ter visto o filme, Joan O’Brien ameaçou processar Lewis se estreasse o “desastre”. A argumentista considerou que ao reescrever o argumento, Lewis deturpou toda a ideia original, em que o palhaço deveria ser visto como uma personagem do mal. Desde então o filme esteve suspenso neste litígio, sem que as partes tivessem chegado a acordo.

Jerry Lewis apresentou outra versão. No Festival de Cannes – onde não chegou a levar a cópia que editara – disse que The Day The Clown Cried nunca irá ser visto porque “é um mau trabalho. Ninguém o verá”. Mais recentemente afirmou que se por absurdo e erro alguém o projectar, as pessoas vão ver o “raio de filme” que têm na frente.

Nesta versão bipolar, entre a obra-prima e a desgraça absoluta, o comediante Harry Shearer, uma das vozes de Os Simpsons, que viu o filme em 1979 (uma das raras pessoas que tiveram acesso a ele), assumiu uma tese inovadora. A de que é muito bom de mau. Em 1992, disse à Spy Magazine que se trata de um “objecto perfeito” e “espantoso” na medida em que “é tão drasticamente errado, o seu pathos e a sua piada estão tão erraticamente colocados, que não é possível fazer melhor naquilo que ele realmente é. ‘Ó Meu Deus’ é a única coisa que é possível dizer-se”.

É possível que não haja muita gente a poder formar uma opinião por si e o culto continue a alimentar-se do segredo.

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