Uma palavra a escrever contra a desigualdade

A conversa com o melhor amigo já ia adiantada quando este a chamou “feminista”. Com 14 anos, era a primeira vez que a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie ouvia a palavra. Mas hoje, apesar de não se lembrar do tema da discussão, assegura que Okuloma não a estava a elogiar: “Consegui percebê-lo através do seu tom.…

Chimamanda só teve a percepção da força das suas palavras quando a palestra ficou disponível no canal de vídeos do YouTube. Depressa se tornou viral, o que significava que o discurso estava a ser debatido nos locais de trabalho e nas escolas. Nem a cantora Beyoncé lhe ficou indiferente – e decidiu incorporar um pequeno excerto do mesmo no single ‘Flawless’, no álbum lançado em Dezembro de 2014 no iTunes, tendo vendido quase 850.000 cópias em três dias.

Mas antes de se fazer notar como uma oradora elegante e algo sarcástica, já o mundo tinha os olhos nela pregados devido ao sucesso dos seus livros. O primeiro, Purple Hibiscus, publicado em 2003, valeu-lhe o Prémio Orange para Ficção e o Prémio Commonwealth Writers, como Melhor Primeiro Livro. Acabou de escrevê-lo no último ano do curso de Comunicação e Ciências Políticas na universidade norte-americana do Connecticut, entre os livros e o babysitting: “Eu era a empregada da minha irmã. Cozinhava e cuidava do meu sobrinho. Levantava-me às duas da manhã para escrever”, disse à Vogue.

A evidente paixão pela escrita começou cedo – lembra-se de ter começado a ler aos quatro anos, embora a mãe insista que foi aos dois, e a escrever aos sete –, mas não foi esta a sua preferência na altura de escolher a sua profissão. Por pouco a sua história poderia ter-se escrito de maneira completamente diferente se tivesse completado o curso de Medicina no campus que a viu crescer, o da Universidade da Nigéria, onde a mãe foi a primeira mulher a inscrever-se, tornando-se depois administrativa, e onde o pai foi professor de Estatística, e mais tarde vice-presidente.

“Como era boa aluna, o esperado era que me formasse em Medicina. Após um ano e meio na universidade decidi que já não queria ser médica. Queria ser escritora. Percebi que não o iria conseguir no meu país e por isso fui para os EUA, onde estudei na Universidade de Drexel durante dois anos, com uma bolsa de estudo. Os meus pais sabiam que eu era o tipo de pessoa que sabia o que queria, por isso deixaram-me ir”, disse ao blogue The Critical Mass.

Uma escrita que nasce da raiva

E assim foi. Sem pedir licença, Chimamanda começou a escrever para rejeitar o silêncio e publicou obras incómodas, por denunciarem aquilo que considera serem problemas culturais e sociais, expondo a desigualdade de sexos, questões relativas à imigração, raça, guerra civil nigeriana e amor. Todos os seus livros se destacam por contarem a história de mulheres interessantes, com fortes personalidades: Kambili em Purple Hibiscus, Olanna em Half the Yellow Sun, que já foi adaptado para o cinema, e Ifemelu em Americanah, o seu mais recente romance, vencedor do importante prémio National Book Critic Circle Award.

E não é por acaso. Afirmou numa palestra que a sua escrita “vem da melancolia, da raiva, da curiosidade e da esperança”. É por causa dessa genuinidade e sinceridade que a caracteriza que tem sido considerada a melhor escritora da sua geração – foi nomeada este ano uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela Time.

Em Americanah explica, pela boca da personagem principal, que só se tornou preta quando foi para os EUA. “Na Nigéria não sou preta”, contou à Vogue. “Não nos dividimos por raças, mas sim por etnias. Os meus amigos da Nigéria não entendem isso. Parecem os brancos do Sul no ano de 1940. Dizem: ‘Porque é que os pretos se queixam acerca da raça? O racismo não existe!’”. Mas na terra da liberdade, esta escritora sente por vezes a forma como é olhada e questiona-se se não será devido à cor da pele.

No seu país de origem, a questão é outra. Por exemplo, se o empregado do restaurante cumprimentar o amigo que a acompanha, ignorando-a, sabe que a razão é por ser mulher. “A opressão contra as mulheres deixa-me zangada. Não consigo deixar de me sentir assim. Não sei como é que algumas pessoas conseguem ficar calmas. A minha família diz-me: ‘és tão homem’, de uma forma amorosa, claro. Mas é óbvio que não sou. Porque não devo dizer aquilo que penso?”.

É por escrever o que pensa que os prémios literários e elogios se têm sucedido. Aos 37 anos, Adichie já tem uma carreira invejável. Em 2010, entrou na lista dos 20 autores de ficção mais influentes com menos de 40 anos e o seu terceiro romance Americanah foi seleccionado, em 2013, como um dos 10 melhores livros a ler, pelo The New York Times. ‘Ceiling’ foi incluído na edição do The Best American Short Stories (Os melhores contos americanos) em 2011. “Os prémios não são a minha maior preocupação. Se o leitor encontrar uma maneira de se identificar com os meus livros, isso é que conta”, diz numa entrevista disponível no YouTube.

Chimamanda vai retribuindo o reconhecimento com a experiência. É a responsável pela formação de novos escritores nigerianos, através de workshops de escrita criativa que organiza todos os anos, desde 2008.

Apesar de ser considerada uma heroína feminista contemporânea, humildemente rejeita esse título. “As minhas heroínas são as mulheres que trabalham no mercado, que mantêm as suas famílias unidas. São comerciantes enquanto os seus maridos estão algures a beber… São essas mulheres que eu admiro. Transbordo admiração por elas”. S.V.

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