Golpe de Estado no Rossio

Tudo é negro no palco de Ricardo III. O chão é negro, as roupas são negras, o cenário é negro. Disforme, vil. Assim é Ricardo III, a personagem de Shakespeare. Assim foi Ricardo III, Rei de Inglaterra. Assim são, ainda hoje, os bastidores das lutas pelo poder. É dessas lutas que aqui se trata. E…

Em junho, Tónan Quito esteve em cena, no São Luiz, com Um Inimigo do Povo, de Ibsen. Agora quis voltar aos meandros da política. “Há muito tempo que queria fazer este texto. Fazia sentido, num ano de eleições, aproveitar a conjuntura política por que estamos a passar para, depois de Um Inimigo do Povo, fazer este Ricardo III e continuar a falar sobre política e poder e o que gravita à volta disso”.

Escrita no final do séc. XVI, a peça narra a ascensão ao poder de Ricardo III – que envolve complexos esquemas que implicam matar meia família e manipular os que escapam à espada – bem como o seu curto mas sangrento reinado. Meio milénio mais tarde, quase tudo permanece igual, com mais ou menos sangue. “As manobras continuam a existir. Continua a haver o uso do poder de forma bruta e atroz. Este Ricardo é só um espelho disso. É inquietante perceber que não se evolui, que andamos em círculos”, diz Tónan Quito. “Continuamos todos a querer fazer parte da lista”.

Salientando todo o trabalho de bastidores que é feito para a ascensão ao poder, de influências, pressão e traição, não só por parte de Ricardo como de todos os intervenientes (não há saídas de cena, todas as personagens são cúmplices e testemunhas), o encenador não deixa de notar, porém, que aqui não há ideologia ou programa político. “Ele quer ser rei porque é a única maneira que tem de voltar a haver guerra. E porque quer ser o espelho da humanidade”. E, nesta versão, todos são Ricardo, com uma corcunda que salta de costas em costas, como um mal que se infiltra, traidor e traído, vítima e assassino, o bem e o mal. “Como se houvesse a necessidade de cada ator ser Ricardo, de ser o protagonista por um momento. Cada morte deixa um espaço livre para outro exercer o seu poder. É a esse ciclo que vamos assistindo ao longo da peça”.

Acompanhando-os a todos está Romeu Runa, o bailarino que aqui é sempre Ricardo, a sua disforme sombra, numa das suas raras incursões pelo teatro. A Romeu Runa e a Tónan Quito juntam-se, em palco, entre outros, Miguel Moreira, Márcia Breia e Teresa Sobral. Um palco que é negro, feito de alcatrão, asfalto, como aquele que cobria as ossadas de Ricardo III, descobertas em 2012 num parque de estacionamento em Leicester. E que durante duas horas e meia serve de chão para estas batalhas sangrentas, que não têm intervalo. Não há pausas numa guerra. “A partir do momento em que pões um plano em marcha, não paras para fumar um cigarro. Aqui não há pontos em suspenso. O clímax é no fim. E temos que correr para lá, não vamos parar uma morte a meio”. 

rita.s.freire@sol.pt