Paraísos só para alguns

As eleições francesas abrem uma luz de esperança em torno da mudança possível, ao mesmo tempo que confirmam quanto a desorientação que a Europa se auto-impôs suscita o enorme risco de empurrar os seus cidadãos para as franjas das opções totalitárias e xenófobas.

mas comentá-las no fim de uma primeira volta não traria nada que não tenha sido já dito ou escrito. será então preferível esperar pelo desfecho de 6 de maio e elaborar um pouco mais, entretanto, sobre dois dos múltiplos factos que descredibilizam a europa aos olhos dos cidadãos: a fraqueza do estado e a injustiça na repartição dos sacrifícios.

o cidadão comum é hoje confrontado com um estado debilitado, incapaz de reunir recursos quer para combater a crise quer, na sua decorrência, para manter o aprovisionamento dos serviços mínimos de bem-estar colectivo – saúde, educação, segurança social, infra-estruturas essenciais – que se tinham dado por garantidos. é esse estado que, em portugal e em grande parte dos países europeus, na sua sofreguidão por receitas, esmaga o cidadão comum entre reduções de salários, isenções fiscais e pensões, por um lado, e aumentos de impostos directos e indirectos e dos preços dos bens e serviços fornecidos por empresas públicas, por outro.

um estudo, encomendado pelos socialistas europeus (s&d) a um gabinete londrino especializado no tema, chega à conclusão de que a totalidade dos 27 estados deixa escapar todos os anos um bilião de euros (1.000.000.000.000 €, ‘one trillion’ em inglês) de receitas fiscais através do que vulgarmente se classifica de fraude e evasão fiscal, um fenómeno de que todos temos consciência e relativamente ao qual também em portugal temos os nossos ‘heróis’…

o fenómeno é, no entanto, bem mais amplo. o valor que escapa ao fisco excede o montante total da despesa pública europeia em saúde e, se fosse cobrado, representaria quase 18% das despesas totais e 22% das receitas totais dos governos da união europeia (ue); bastaria que 1/5 deste montante fosse investido para que o investimento público na ue passasse de imediato dos actuais 2,7% do pib para 3,5%. não seria este um bom impulso para combater a crise?

como se explica a passividade europeia perante esta evidência? construímos, na realidade, uma europa que garante a livre circulação dos capitais entre os diversos estados membros sem que estes tenham qualquer obrigação de harmonizar (ressalvado, parcialmente, o caso do iva e dos impostos especiais) as práticas administrativas, o tipo de impostos que aplicam, a base de incidência, as isenções ou as taxas. se acrescentarmos a este facto a tolerância para com os paraísos fiscais assumidos (fora mas também dentro da europa) e práticas de opacidade na troca de informação fiscal (veja-se o luxemburgo ou as clamorosas práticas da vizinha suíça), podemos facilmente concluir que um mercado interno construído para promover a concorrência entre empresas é hoje, em termos fiscais, um espaço concorrencial entre países, cheio de buracos negros e cinzentos pelos quais se escoam receitas substanciais.

não seria do interesse comum atacar determinadamente este problema? sem dúvida, mas um dos obstáculos principais à alteração desta situação reside em que qualquer harmonização em matéria de fiscalidade exige a concordância da totalidade dos estados membros. um acordo impossível pelas vantagens ‘nacionalistas’ decorrentes da situação actual, sugerindo a corrida para os níveis mais baixos de fiscalidade como a estratégia mais lógica para os diferentes países… só que tal significa o enfraquecimento sucessivo do estado… é esta a europa que queremos?

cabe aos cidadãos – a maioria dos quais paga mesmo impostos – conferir a este tema a prioridade política que ele justifica. foi nesse sentido que, com o líder no parlamento europeu dos s&d, e perante os dados concretos de que passamos a dispor, subscrevi na última sessão plenária em estrasburgo uma pergunta à comissão e ao conselho, seguida por uma resolução que reuniu o apoio dos principais grupos políticos e da grande maioria dos deputados. temos de exigir às instituições comunitárias que, sobretudo num momento de crise como o actual, defendam os interesses da europa e dos cidadãos e passem por cima dos interesses individuais/nacionais.

claro que o mundo está crivado de paraísos fiscais… mas quem, se não a europa, eventualmente aliada aos estados unidos, pode combatê-los? no entanto, até para ser credível no g20, tem de começar por sê-lo internamente, junto dos seus cidadãos.

*economista e eurodeputada