Doações fintam imposto sobre heranças

O medo do regresso do imposto sucessório, abolido em 2004, tem levado um número cada vez maior de cidadãos a doar os bens em vida. A medida não está no OE 2016, mas há advogados que a consideram “quase uma certeza” para 2017. 

A medida constava do programa do PS e “assustou”. “Os cartórios estavam entupidos no final do ano”, conta Sofia Matos, advogada na Antas da Cunha & Associados.

O retorno do imposto sucessório acabou por não constar do Orçamento do Estado para 2016, o que não impediu uma verdadeira corrida aos cartórios notariais para efetuar doações em vida dos bens. E o comportamento mantém-se desde então. “Parece-me evidente essa tendência. Não o consigo comprovar com números mas no meu cartório, nos cartórios de colegas e colégios com quem tenho conversado, desde o último trimestre do ano passado é sem dúvida uma realidade evidente”, confirma João Maia Rodrigues, bastonário da Ordem dos Notários.

“As pessoas assustaram-se muito com as notícias que começaram a vir a lume do restabelecimento do imposto sucessório e, de facto, começaram a acautelar as suas situações fiscais ao recorrer muito mais aos cartórios e notários para fazer escrituras de doação. Falamos do uma média muito superior ao que tínhamos visto até aqui”, revela.

O agora “boato” surgiu até de um documento muito oficial: programa de Governo do PS. “Efetivamente, estava na calendarização a reposição do imposto de selo sobre as sucessões e doações para aquilo que foi apelidado de grandes fortunas. Primeiro, falava-se de valores acima de um milhão de euros, depois foi generalizado para heranças de elevado valor”, explica Sofia Matos.

Regresso à vista

A ideia ficou em banho-maria – foi remetida para discussão em concertação social – mas continua a ser um objetivo do Executivo. Resta saber os moldes em que será recuperada. “No programa macroeconómico do Governo falam de uma taxa única de 28% para as heranças acima de um milhão de euros. Mas não dizem se os que estão para baixo ficam completamente isentos, ou se há uma taxa reduzida para os sucessíveis [herdeiros] mais próximos, como os filhos. O que podemos contar, com toda a certeza, é com uma taxa única de 28% para heranças acima de um milhão de euros”, diz a advogada.

Quando se faz uma doação ou se recebe uma herança, há sempre uma taxa a pagar. Além da taxa de 28% para as grandes fortunas, há outra mudança que poderá ocorrer e essa prende-se com o tal ‘taxa obrigatória’. “A verba 1.1 da tabela do imposto do selo já configura este imposto e taxa-o a 0,8% sobre o valor patrimonial, e isso existe sempre, em todas as doações”, diz o bastonário.

“Até agora, havia [e, por enquanto, há] isenção quando a doação é feita havendo uma relação familiar, nomeadamente de pai para filho. Já se eu doar a um estranho a minha casa, ele não só paga os 0,8% de imposto como vai pagar 10% da verba 1.2 do imposto de selo”. 

Segundo explica o bastonário, esta alteração foi introduzida em 2004 quando eliminado o antigo imposto sobre sucessões. A medida surgiu para proteger determinadas relações patrimoniais. “De pai para filho e vice-versa ou marido para mulher, que mereciam a isenção dos 10%. E é isso que poderá também ser reintroduzido. Para este Orçamento já vimos que não, veremos para o próximo”, considera João Maia Rodrigues.
O secretário de Estado para os Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, chegou a adiantar no mês passado, em entrevista ao Negócios, a possibilidade de taxar retroativamente doações já consumadas. A hipótese foi afastada pelo próprio logo de seguida: “Como é evidente não se trata de tributar as doações já feitas”. Para Sofia Matos, não há grandes dúvidas de que “esta medida vai sair como uma medida fiscal estrutural para 2017”.

‘Medida extremamente injusta’

As razões que a levam a acreditar neste reforço são fáceis de explicar. “A necessidade de recuperar um imposto – que tinha sido abolido em 2004 – está relacionada com as fontes de financiamento da segurança social. Nós temos um problema grave na segurança social e o Estado tem de ir buscar fontes de rendimento a algum lado”, opina.

Para a advogada, resta saber os moldes em que o imposto sucessório será aplicado. “Isto vai acontecer com toda a certeza. Não sabemos é se a taxa vai ser única de 28%, ou se esse valor será apenas para as tais heranças de elevado valor. Também não sabemos se vão deixar a antiga taxa dos 10% para heranças inferiores ao milhão de euros, mas que está na calha, não há dúvidas de que está”, garante Sofia Matos. Tanto que aconselha todos os clientes a doar em vida o património de que são proprietários enquanto a lei não for alterada.

Mas se a entrada deste imposto em vigor é, para a especialista, quase uma certeza, a justiça desta tributação fica aquém do desejável. “Considero esta taxa única de 28% extremamente injusta para o contribuinte. Durante uma vida inteira, aqueles que são proprietários do património pagam os respetivos impostos ao Estado. Pagam quando adquirem o imóvel, pagam o Imposto Municipal das Transações (IMT), o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), pagam às autarquias as taxas de saneamentos e esgotos, etc. É toda uma vida a contribuir”. 

A advogada considera “injusto alguém que receba um bem que já pagou uma série de impostos – mesmo que os pagamentos tenham sido efetuados pelo anterior proprietário – tenha que o fazer agora só pelo simples facto de ser filho ou herdeiro”.