Os Justos sobem ao palco da Cornucópia

Vida madrasta aquela em que os melhores amigos estão noutra turma ou até noutra escola. O pai recebeu uma proposta de emprego para outra latitude, ou a mãe, às tantas, prefere o colégio privado. E depois há o drama daqueles que conseguem ser colegas de carteira até ao fim da formação… e a seguir? A…

Os Justos sobem ao palco da Cornucópia

Essa condição de «não ir cada um para seu lado», como nos confirma João Reixa, fez com que, há cerca de um ano, se começassem a reunir à mesma mesa para discutir convergências e assuntos para explorar em palco. Processo que se reforçou com a noção de que esperar é verbo que os apoquenta, sobretudo num meio em que os autocarros não passam assim tantas vezes pela paragem. «Neste meio não há estabilidade nenhuma. O facto de criarmos um grupo e sabermos que há uma continuidade vai-nos permitir sempre estar no ativo e a fazer coisas que nos interessam fazer. Se não criássemos estaríamos sempre dependentes que alguém nos chamasse. Aqui, à partida, vamos estar sempre a fazer coisas de que gostamos e isso não nos impede de termos projetos paralelos», explica Rita Cabaço.

O Teatro da Cidade parece urgir desse querer que dita que a imaturidade também é combustão criativa, teste, corta e cola que em palco vira procissão a ser ajustada a caminho do adro. Mas nem tudo é desejo, como nos explica Guilherme Gomes: «A urgência acaba também por ser uma coincidência. Já que nos encontrámos todos e já que faz tanto sentido com estas pessoas querermos tentar construir a partir disso, acima de tudo há uma espécie de liberdade artística. Como somos tão novos acabamos por ir fazendo aquilo que vamos descobrindo e isso é algo muito bonito».

Alguém os está a ouvir?

A beleza da imaturidade não tem que ser encarada como inocência. É certo que gente na casa dos 20 que fala assim não é a mais exemplificativa da sua geração. Surge à conversa a falta de atenção generalizada em relação ao teatro tal como a falta de público jovem na audiência. Preocupação que importa ao Teatro da Cidade, assim não fosse e não tinham realizado uma conversa/debate para pensar a representação na ópera e no teatro. «Enquanto grupo temos a ideia de procurar trazer as pessoas ao debate teatral, começámos fazer uma ação da Faculdade de Letras, com o Mestrado de Estudos Teatrais. Não queremos apenas que as pessoas consumam o espetáculo, queremos que estas estejam dentro do processo e isso pode conseguir despertar algum interesse», conta João Reixa.

E é também enquanto grupo que admitem que o objetivo é, quando o tempo assim o permitir, obterem um edifício que seja a casa do Teatro da Cidade, mesmo que Bernardo Souto sugira que o procuram por esta altura é um lugar interior, dentro do grupo. «Seria o ideal termos o nosso espaço, claro. Nascer uma nova companhia é quase como nascer um polo cultural que influencia tudo o que está à volta. Pensemos na Mónica Calle, que influenciou toda a paisagem em que se inscreve. Estas coisas que transcendem a criação artística, com um impacto social, interessam-nos bastante», clarifica Guilherme Gomes antes de acrescentar que aquilo que a Cornucópia está a fazer por este grupo «devia servir de exemplo» a outras estruturas deste género.

Justiça lhes seja feita

Foi Luís Lima Barreto que lhes aconselhou Os Justos, texto que lhes serve o rosto do primeiro espetáculo. Apesar de serem um coletivo – e de assim assinarem quase todos as componentes do espetáculo: Coleção Criativa do Teatro da Cidade – o processo com que montam este primeiro capítulo da sua história não difere muito do bê-à-bá da criação teatral, com a assimetria forçada de serem cinco. «Na criação é tudo feito democraticamente, pegamos no texto, depois avançamos para cena e vamos experimentando e fazendo propostas uns aos outros, existe sempre esse diálogo, o que resulta ou não resulta, é um processo muito artesanal nesse sentido», enquadra Nídia Roque.

É aqui que fica patente que João Reixa assume a personagem principal porque não gostou muito do texto, à partida. Brincadeira que leva a coisa a séria. É que o Teatro da Cidade têm ínfimas possibilidades de produção. Isto significa que num próximo espetáculo pode ser um dos elementos a assinar a encenação, outro o texto, e por daí em diante: «Sim, é interessante passar por várias experiências e várias formas de espetáculos, é diferente interpretares um texto escrito por ti do que um texto do Camus», reconhece Guilherme Gomes.

Em palco, um grupo de terroristas russos planeia um atentado terrorista com o fim de matar o Grão Duque, representante do regime que oprimia a Rússia do início do século XX. Mas este é um texto que transcende essa temática tão atual, é antes uma reflexão profunda sobre questões transversais para a sociedade contemporânea, não estivéssemos nós a falar de Camus. «Acabámos por escolher este texto porque nos identificámos com suas as características primárias. Era um grupo de jovens, como nós e há poucas personagens, coisa que facilitou bastante, depois entusiasma-nos fazer este texto porque toca em temas fundamentais para a identidade humana e para o pensamento contemporâneo. A dignidade individual, o valor da vida, a legitimidade para se matar, são temas que devem ser pensados», afirma Guilherme Gomes.

Teatro da Cidade ou um bando de miúdos justos. Alcunha que lhes assenta lindamente.