Papéis do Panamá não servem como prova

O Ministério Público deverá abrir nos próximos dias um inquérito ao chamado caso Papéis do Panamá, mas a documentação que será divulgada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação nunca poderá servir como prova para a investigação. Juristas contactados pelo SOL explicam porquê: «Não vai servir como prova porque há uma presunção de que tenha…

Uma posição partilhada pelo procurador Rui Cardoso. Segundo o magistrado, pelo que se conhece até hoje, «a validade probatória desta documentação é muito questionável».

Em causa estão mais de 11 milhões de documentos que contêm todas as informações sobre os clientes da sociedade de advogados Mossack Fonseca, que se dedicava à constituições de offshores no Panamá. Os dados dos últimos 40 anos foram entregues em julho ao jornal alemão Süddeutsche Zeitung e terão sido conseguidos, segundo o fundador daquele escritório, através de um ataque informático.

Ramon Fonseca já assumiu que os documentos foram retirados do sistema, pedindo até ao Ministério Público do Panamá a abertura de inquérito, mas para um inquérito isso não é suficiente para atestar a sua veracidade.

«Para serem usados num qualquer inquérito teriam de ser pedidos por via oficial. Por determinada informação aparecer num jornal não quer dizer que seja verdadeira, que existe mesmo. É por isso que seria preciso pedir oficialmente às autoridades do Panamá que intimassem essa sociedade para se certificar de que aqueles documentos estão em seu poder», esclarece um dos advogados que preferiu não ser identificado, como aliás todos os outros que aceitaram falar com o SOL sobre este assunto.

Prova é nula mas pode servir para início de investigação

Não é completamente consensual para os advogados, mas entre procuradores a questão não oferece qualquer dúvida. «Para obter notícia de crime qualquer suspeita serve independentemente da legalidade com que a fonte da notícia obteve essa informação. Outra coisa é para condenar uma pessoa, aí o Estado impõe a si limites ao direito probatório e há limites que não são ultrapassáveis», explicou ao SOLum procurador sob anonimato, lembrando que em causa está «a violação da privacidade e do segredo bancário de uma série de pessoas». Posição idêntica à de Rui Cardoso.

Na prática, lembram, passa-se o mesmo com as escutas telefónicas em que se descobrem crimes que não estavam a ser investigados. Como as intercetações só estavam autorizadas numa determinada investigação por suspeitas de crimes em específico, se se descobrirem outros crimes a informação pode ser usada para abertura de um outro inquérito.

«As escutas que sejam inadvertidas, isto é de conhecimento fortuito (por exemplo que são sobre tráfico de droga mas surge a informação de um homicídio durante e interceção), servem apenas para obter notícia de um crime. São conceitos diferentes e é preciso distinguir: a obtenção da notícia de crime e a prova», esclarece o magistrado que pediu para não ser identificado.

As dúvidas sobre o ‘fruto da árvore envenenada’

Segundo os advogados contactados pelo SOL pode, no entanto, questionar-se até se esta documentação pode dar início a uma investigação. «Pode questionar-se que se investigue uma situação de que se teve conhecimento através de documentos conseguidos com a prática de um crime», afirma um deles, referindo que a isto se chama o «fruto da árvore envenenada».

«Simplificando era como se alguém sob tortura confessasse um homicídio e dissesse onde estava o corpo. Ainda que a prova seja nula, porque tinha sido conseguida por tortura, a polícia deveria ir ou não à procura do corpo? O que é que se faz com casos de provas nulas?!», questiona.

Apesar das dúvidas levantadas até os advogados que se assumem mais fundamentalistas admitem a possibilidade de os Papéis do Panamá serem o início de uma investigação aos cidadãos portugueses que detém offshores naquele país.

«A doutrina tem vindo a desenvolver algumas teorias, nomeadamente esta: haveria outra maneira de descobrir o corpo sem ser através daquela prova nula? E assim tentam amenizar o efeito mais radical dessa prova nula, que, no limite, é não se poder quase falar no assunto», explica outro jurista.

Uma discussão que advogados e o magistrado do Ministério Público consideram que será muito interessante de seguir e que trará muitas dúvidas jurídicas em Portugal e em vários outros países. «Estou convencido de que na maioria dos países será como em Portugal, tudo isto só servirá para obter a notícia. Os italianos chamam ‘inutisibilidade da prova’, os alemães ‘proibições probatórias’, os norte-americanos usam outro nome, mas é semelhante», refere o procurador que não quis ser identificado.

Autoridades também tentam contornar as regras

Ao SOL, um dos advogados referiu mesmo que a investigação poderá até contornar a polémica, caso o Ministério Público do Panamá diga que já conhecia o caso e que estava a investigar independentemente de tudo o que foi tornado público pelos jornais.

«As autoridades do Panamá podem vir dizer que já tinham uma denúncia anónima e que se preparavam para intimar o escritório independentemente desta divulgação, aí dá-se por garantido que não se está a usar a prova nula. Isso é que é o encanto dos processos», diz, lançando uma provocação aos investigadores: «não são só os advogados que tentam contornar as normas, a investigação também».