Jorge Silva Melo regressa a Tennessee Williams

Ao som da roldana a girar seguem-se a faísca, a chama e o fumo. Na escuridão, o narrador, Tom Wingfield (João Pedro Mamede), faz o enquadramento. Filho e ganha-pão de uma família caricata, Wingfiled trabalha num armazém de calçado e leva para casa 65 dólares, o que mesmo no Sul dos EUA dos anos 30…

‘O teatro contemporâneo não nasceu ontem’

O Jardim Zoológico de Vidro retoma a arte de saber escutar a mesma história 20 vezes só porque o contador gosta de o fazer. Guardar para nós o «já me contaste isso» nem sempre é fácil. É o regresso de Jorge Silva Melo e dos Artistas Unidos a Tennessee Williams, autor que não os tem largados nos últimos tempos. O Jardim Zoológico de Vidro  estreia dia 27 e fica até 4 de junho no Teatro da Politécnica.

À boleia dos Artistas Unidos, Tennessee Williams tem estado por estas bandas, volta não volta lá ocupa um palco português. Doce Pássaro da Juventude e Gata em Telhado de Zinco Quente, espetáculos que a companhia levou ao Teatro Nacional São João, ao São Luiz Teatro Municipal, ao CCB e um pouco por todo o país.

Este retomar nasceu de uma vontade de Jorge Silva Melo, da possibilidade de explorar um Tennessee Williams mais contido, mais Artistas Unidos. Algo que está de braço dado com um desejo de pegar num texto que o encenador classifica como «clássico do contemporâneo». «Tínhamos feito Harold Pinter [‘O Regresso a Casa’, em 2014] e ficámos a pensar no Tennessee Williams porque tínhamos co-produções com os grandes teatros e porque não sabíamos se íamos ficar na Politécnica. Quando os problemas se resolveram, pensámos que tínhamos que fazer Williams para uma sala mais íntima. Gosto sempre de regressar às origens do teatro contemporâneo. Muito dele nasceu desta escrita nervosa, angustiada e livre. O teatro contemporâneo não nasceu ontem», explica.

O remorso de Williams

Escrita pelo dramaturgo norte-americano em 1944, a obra obteve enorme sucesso, ao ponto de vencer o Prémio da Crítica em Nova Iorque nesse mesmo ano. Aos olhos de Jorge Silva Melo, o autor teve a brilhante sensibilidade, em modo rebuçado surpreendente, de «ter apresentado uma família de vencidos». O encenador dá especial destaque à figura maternal: «Não chegou a cumprir o seu sonho de grande dama, vive do pequeníssimo salário do filho que trabalha numa fábrica de sapatos, como o próprio Tennessee Williams, e tem a seu cargo uma filha incapaz, deficiente e diminuída. Ainda assim, esta mãe não abandona os seus tiques de grandeza, mantém a vontade de ser bela, de receber bem, mesmo quando a eletricidade está cortada».

Ou seja, se dúvidas existissem, acabaram de ser dissipadas. É uma das obras mais autobiográficas de Tennessee Williams. Aqui assume a pele de Tom, que, como se vai adivinhando durante o avançar do enredo, acaba por partir porque não pode ficar, porque quer mais do que os 65 dólares de salário que servem para sustentar a mãe e a irmã, e ainda, porque quem sai aos seus… Tom, tal como Tennessee, viu o seu pai partir para dar um jeito à sua vida, para ganhar dinheiro e ter sucesso. Daí que O Jardim Zoológico de Vidro esteja carregado de simbolismo. Que virou real.

«A peça é um remorso que o Tennessee Williams tem de ter abandonado a família e de ter ido tratar da sua vida para Nova Iorque e Hollywood, e de ter deixado no Sul esta mãe iludida e a irmã que passado pouco tempo teve uma lobotomia que a fez ficar como vegetal o resto da vida. Ele tratou de financiar os tratamentos da irmã, mas ainda assim…», conta Jorge Silva Melo.

Tom é, por certo, a personagem mais duvidosa. Enquanto sempre se manifesta próximo da irmã, preocupação constante com a sua condição de aleijada, de pouco atraente para qualquer homem, é revoltado por natureza, assertivo e satírico na hora de responder à mãe. E entende-se – é que Amanda, todos os dias servia, fazia questão de servir, de despertador de Tom. Gritava, todos os dias, a mesma frase pseudo-motivacional: «Levanta-te e brilha», vezes e vezes sem conta. Talvez por isso Tom nunca passava uma noite em casa. «Onde vais?» pergunta-lhe a mãe todas as noites, ao que ele responde sempre: «Vou ao cinema». Mas chega a casa com um cheiro a álcool difícil de justificar com filmes aromáticos. Jorge Silva Melo diz que consigo passava-se o contrário: «Ia tantas vezes ao cinema que tinha que justificar que ia estudar a casa de uns amigos. Mas depois voltava para casa cedinho, não ficava até às tantas. Quando tinha 20 e tal anos os filmes acabavam no máximo à meia-noite».