Santa Madre Teresa de Calcutá, o ícone imperfeito

O nome é hoje sinónimo de bondade, mas a herança da mais recente santa católica não está livre de controvérsia.

No momento de canonizar um dos mais conhecidos ícones modernos da Igreja Católica, sob um sol ardente e diante dezenas de milhares de pessoas que enchiam a Praça de São Pedro, Francisco admitiu que seria difícil habituar-se ao novo nome de Madre Teresa de Calcutá, a santa. “Acho que talvez possamos ter alguma dificuldade em chamar-lhe Santa Teresa: a sua santidade está-nos tão próxima, tão terna e produtiva, que continuaremos espontaneamente a chamar-lhe Madre Teresa”, disse o Papa na manhã de ontem, desviando-se – no seu caso, não surpreendentemente – do cânone cerimonial. 

À mesma hora, em Calcutá, a cidade indiana que viu o mito de Madre Teresa nascer, poucas centenas de pessoas assistiam à cerimónia num ecrã montado em frente à cinzenta, alta e modesta Casa da Madre. Lá gere-se a ordem dos Missionários da Caridade, fundada por Teresa em 1950, respondendo ao que disse então ser o chamamento para “servir o mais pobre dos pobres”. 

A ordem que começou com uma dúzia de apoiantes tem hoje 5600 membros e centenas de milhares de voluntários. Para eles, a canonização de ontem foi apenas o formalizar de uma santidade atribuída há muito por vontade do povo. 
“Não é o tornar-se uma santa: ela sempre foi uma santa”, explica a freira Nicole ao “Washington Post”, vestida com o simples traje azul e branco de Teresa. É uma opinião partilhada pelo mundo católico, para quem o nome do seu mais recente santo se tornou sinónimo de bondade e abnegação. O processo foi invulgarmente rápido:João Paulo começou-o dois anos depois da sua morte, em 1999, quando o costume é esperar cinco anos. 

Chegou a pensar-se que Madre Teresa seria canonizada em 2003, um ano depois de o então Papa lhe ter atribuído o seu primeiro milagre: a cura de um tumor no estômago conseguida depois de a mulher ter pousado no ventre um crachá tocado pela freira. O seu processo haveria, contudo, de estagnar sob o papado de Bento XVI antes de Francisco lhe atribuir um segundo milagre, no ano passado, o de um homem brasileiro com uma infeção cerebral, curado inexplicavelmente por rezar em nome de Teresa. 

A sua obra parece inesgotável. A fama que atingiu no final da década de 60 pelo seu trabalho com os indianos pobres e leprosos de Calcutá levou à criação de centenas de residências para sem-abrigo, orfanatos, hospícios, casas para os doentes terminais, clínicas pediátricas ou centros para toxicodependentes. Teresa conseguiu o apreço dos líderes mundiais de ambos os lados de um mundo polarizado pela Guerra Fria e o Nobel da Paz de 1979 – “não sou merecedora”, disse. Mas há manchas nas suas vestes azuis e brancas e muitos dizem que a sua canonização pode ter sido precipitada e pouco refletida.

Más práticas

Madre Teresa é hoje um ícone imperfeito. A sua profunda oposição ao aborto – “o pior dos males e o maior inimigo da paz”, comentou –, divórcio e uso de contracetivos afastou-a de muitos meios liberais. Além disso, os seus hospitais foram muitas vezes acusados de más práticas médicas. 

De acordo com o médico indiano Aroup Chatterjee, que entrevistou dezenas de pacientes e voluntários, fazia-se pouca distinção entre doentes terminais e os que podiam ainda salvar-se, as seringas eram frequentemente usadas em vários pacientes sem serem esterilizadas e era prática corrente negar-se analgésicos no leito da morte. 

“Não somos enfermeiras, não somos médicos, não somos professores, não somos assistentes sociais: somos religiosos”, afirmou Teresa, que exigiu que fossem retirados todos os tapetes, cortinas e sofás do convento que inaugurou em São Francisco, nos Estados Unidos, dizendo que o conforto corrompe. Recusou também abrir um centro para os pobres no Bronx porque as autoridades nova-iorquinas exigiam que tivesse um elevador. Teresa apreciava a dor católica. “Sofres como Cristo na cruz, por isso Jesus deve estar a beijar-te”, disse a um paciente, que lhe respondeu: “Então por favor peça-lhe que pare de o fazer.”

O jornalista Donal MacIntyre trabalhou uma semana num dos seus centros para crianças com deficiência em 2005, escrevendo secretamente uma reportagem para a revista “New Statesman”: “Arrepiei-me com o tratamento bruto de alguns dos funcionários a tempo inteiro e das irmãs missionárias (…) Algumas crianças vomitavam e tossiam enquanto os funcionários apressados forçavam comida nas suas bocas. Rapazes e raparigas eram deixados em casas de banho abertas durante 20 minutos. Cabisbaixo, sem apoio, alguns salivando, outros dormindo, tornavam-se uma visão patética. O seu tratamento foi uma afronta à sua dignidade.