Amália Rodrigues Ela que levou um povo ao mundo

Quando se assinalam 17 anos da sua morte, Amália continua a ser recordada, agora através do último dos géneros musicais que conquistou: o folclore.

Não queria ir de preto, como habituou as salas portuguesas, não ficava bem com os músicos de casaca de gala escura que a acompanhariam no Hollywood Bowl, em Los Angeles, EUA, em 1966. Escolheu um vestido com tons fortes, com Portugal estampado na saia, e um xaile em tom carmesim. Conta-se que a plateia lhe bateu palmas de pé e até os músicos da metropolitana norte-americana se terão juntado ao aplauso entusiasmado. Fez igual quando atuou em Nova Iorque. “Ela tinha essa noção do espetáculo”, conta Frederico Santiago, “não é por acaso que foi ela que trouxe o fado para os palcos”. No entanto, para o coordenador da coletânea “Amália no Chiado”, que desde novembro de 2014 vem reunindo a obra da estrela portuguesa, “ela era muito mais que uma fadista”. “Havia um género muito dela. O cantar ondulado, que lhe diziam ser à espanhola, foi uma coisa que ela trouxe e depois ficou. Não oiço ninguém como ela”.

É uma fotografia com este vestido que ilustra a capa do novo disco, o mais recente desta coletânea, lançada sob a alçada da Valentim de Carvalho, que continua a relembrar Amália Rodrigues, 17 anos após a sua morte – data que se assinala no dia 6 de outubro –, e com a coordenação de Frederico Santiago. “Amália Canta Portugal” é a reunião dos temas folclóricos gravados, ao vivo e em estúdio, na voz da artista. Trata-se, em subtítulo, do cancioneiro popular de Amália, uma artista “trazia a alegria do folclore depois da tristeza do fado”, assegura Frederico Santiago. Curiosamente, foi este o último género musical conquistado por Amália Rodrigues: o folclore.

Num volume com dois discos – singles, inéditos, concertos e ensaios – em “Amália Canta Portugal”  conta-se com várias faixas divididas entre as orquestras e a guitarra portuguesa. Pelo meio, o espetáculo de 1966, no Hollywood Bowl. O tal onde não fazia sentido vestir preto.

 

Malhões desde a infância

O legado de canções populares no reportório da mulher que um dia revelou acreditar que aprendeu “a cantar antes de falar” poderá ter influência familiar, na medida em que os seus pais vinham da Beira Baixa. Neste disco viaja-se pelos “malhões” tradicionais e bailaricos, os tais que seguramente cresceu a ouvir. E se no fado mais clássico a naturalidade de Amália é amplamente reconhecida, é também notório o à vontade que a artista tinha com este tipo de música que, na verdade, esteve sempre na sua vida.

E que fez questão de, tal como o fado, também o levar além-fronteiras. O papel que Amália Rodrigues teve no elevar do fado e da música portuguesa é, de resto, sustentado com a presença internacional que ganhou ao longo da carreira. “Ao contrário do que muita gente diz, não cantava só para emigrantes. Cantou em grandes salas e levar o folclore português às elites de outros países foi um feito”, analisa o coordenador deste projeto. E para ela, recorda, nunca deixou de ser “cantar cantando”. Citando a biografia da artista escrita por Vítor Pavão, “canto como uma pessoa que anda a cantar no campo ou na rua”. “As autênticas cantoras de folclore têm aquelas vozes lá em cima”. E a voz de Amália Rodrigues era conhecida por isso mesmo.

Amália Rodrigues morreu em 1999, depois de levar Portugal ao mundo quando o mundo mal entrava em Portugal. Por isso mesmo, esta coletânea não terminará aqui. Frederico Santiago continuará a lembrar a fadista com a publicação de projetos discográficos, demonstrando a versatilidade temática com que Amália fez carreira. Uma versatilidade que deve ser dada a conhecer.

Justamente por esta razão, neste disco, Frederico Santiago tentou preservar a autenticidade da música de Amália. Foi feita uma gestão conservadora do reportório, respeitando as opções originais da fadista. Nos temas de Zeca Afonso, em que são cantadas uma balada e uma canção de Natal, Frederico Santiago recuperou também um célebre single de 1975, “Grândola, Vila Morena”. Ao mesmo tempo, o coordenador do projeto garantiu que a faixa seguinte era a que estava no verso do single da altura, “Alecrim”.

 

O fado depois de Amália

Este estilo está vivo e recomenda-se, portanto. Lisboa ribomba com um fado renovado, de respeito aos mestres e esperança nos novos, de abertura a quem vem de fora mostrando o que já antes cá estava. Talvez daí o sucesso na crítica que a coletânea elaborada pela Valentim de Carvalho conseguiu. Um sucesso que se confirma diariamente em casas de fado sempre cheias, festivais do género, novas vozes. Todos, sem exceção, falam de Amália.

Marco Rodrigues é fadista residente da “Adega Machado”, a segunda casa de fado de Amália. Lembra que, no final dos anos 70, foram os bairros de Alfama, Mouraria e Bairro Alto e as casas de fado a manter a chama acesa. “Mesmo no tempo em que cá ninguém dava importância ao fado, Amália continuava a fazer grandes salas a nível mundial”, recorda. Hoje, quando o fado já não precisa que lhe mantenham a chama acesa, Marco Rodrigues, recentemente nomeado para um Grammy na categoria de melhor álbum folk, é dos principais rostos de uma nova vaga de fadistas.

Ele, tal como Amália, é um “fadista que não canta só fado”, como outros da sua geração, nomeadamente Raquel Tavares, Cristina Branco, Gisela João, Ana Moura.

O artista conta que, quando ouve críticas a quem traz instrumentos além dos clássicos, gosta de pensar que Amália “já juntava harpa e saxofone e era um sucesso enorme”. Encara então o fado como “uma música contemporânea, como o tango, o flamengo ou o jazz”, mas sublinha que quem quer “mexer com ela tem que conhecer muito bem as suas características”. Como Amália conhecia. A cantora, segundo Marco Rodrigues, “conhecia os fados tradicionais de trás para a frente, as melodias, os poemas”. Mais: “Tinha a habilidade de cantar poemas diferentes com a mesma música, muitas vezes fazia-o nas casas de fado”. Outras vezes fazia-o no resto do mundo. Já dizia o poeta, que os grandes “da lei da morte se vão libertando”.