Calçada da Ajuda pode vir a ter o primeiro “Quartel de Cultura” do mundo

Até 1 de julho de 2015, esta foi a casa do Regimento de Lanceiros n.º 2. Agora, a Associação de Turismo Militar quer aproveitar o espaço desativado – a meio da Calçada da Ajuda – e dar-lhe uma nova vida.  Uma vida onde a cultura entra em todas as salas 

A Associação de Turismo Militar (ATMP) quer transformar o antigo quartel do Regimento de Lanceiros nº. 2, na Calçada da Ajuda, num espaço multifacetado onde estudantes, artistas e freelancers, entre outros, possam trabalhar e expor as suas obras. O projeto do Quartel da Cultura – que já foi apresentado ao Ministério da Defesa e até ao ministro da Educação – prevê a adaptação do espaço construído no século XVIII num local onde se “viva durante 24 horas”, disse ao i Álvaro Covões, presidente da associação. 

“Em Lisboa, por exemplo, se um grupo de jovens quiser formar uma banda não tem espaço para ensaiar. Se um grupo de amigos quiser começar um grupo de teatro a mesma coisa, e aí surgiu a ideia. Obviamente que a oportunidade apareceu neste panorama da redução efetiva das Forças Armadas, que levou ao acesso aos ativos e a um conjunto de estruturas que estão habilitadas a começar a funcionar com outra atividade”, diz o presidente.

Mas descrever o espaço como uma grande galeria ou um espaço de ensaios é um eufemismo. Estão pensados campos de paddel e de futebol; residências com cerca de 250 camas para jovens universitários, alunos em pós-graduação ou professores em licença sabática; espaços de coworking; escritórios de start-ups; galerias de arte; estúdios de ensaio e um espaço de restaurantes. “Deve ser um desespero tentar arranjar locais onde se possa trabalhar e trocar experiências, não existe nada. Por isso é que as bandas começam na garagem, que é o único sítio que têm para ensaiar”, defende o presidente. 

A ATMP garante que os preços dos alojamentos e dos demais espaços serão low-cost. Por exemplo, o preço do alojamento para os estudantes rondará os cem euros mensais. “A nossa lógica não é a do lucro, obviamente que temos que ter receitas mas é um projeto que podemos definir como sendo coletivista” garantiu Álvaro Covões [ver entrevista nas páginas seguintes]. O projeto a que o i teve acesso – cuja execução económica já foi avaliada e aprovada – está agora nas mãos do Ministério da Defesa.

A associação acredita que este projeto inédito será, sem dúvida, uma mais-valia para a recentemente requalificada calçada da Ajuda. E, quem sabe, trazer mais visitantes ao próprio Palácio Nacional. “Já temos ali o picadeiro a funcionar bem, os turistas vão lá muito ver os espetáculos de alta escola portuguesa de equitação mas o Palácio da Ajuda continua muito acima do eixo de Belém. É, como os espanhóis dizem, “tan cerca y tan lejos”. Poder ter ali mais um chamariz de cultura, pago com os próprios capitais da ATMP, só pode ser uma coisa boa”, termina Álvaro Covões.

Preservar o património Para além da nova vida do espaço, há toda uma história que urge preservar. “Não queremos mudar o espaço, apenas adaptá-lo. E, caso seja necessário voltar a ser usado como quartel, a infraestrutura estará pronta para isso”, garante a ATMP.

Por outro lado, manter a identidade do local – intimamente ligada à história do Regimento de Lanceiros – e preservar as raízes dos antigos militares com o quartel faz parte dos planos. “Queremos manter no quartel a Associação dos antigos Lanceiros e criar também o museu dos Lanceiros que têm uma história fantástica e bonita de se contar”. 

Uma história com 180 anos Em fevereiro de 1833, é constituído o regimento de Lanceiros da Rainha durante as Guerras Liberais. Foi instalado na Calçada da Ajuda – numa altura em que Palácio da Ajuda era apenas usado para cerimónias protocolares –, num edifício mandado construir no fim do século XVIII para um corpo de polícia. “O quartel já foi construído para ser uma unidade de apoio aquela zona”, disse ao i o coronel Marcos Andrade que escreveu uma obra sobre a história do regimento.

A Calçada da Ajuda chegou a ser conhecida como a rua dos quartéis”, continua o oficial . “Nessa altura, havia já o quartel Conde de Lippe [que agora pertence à GNR] mais acima. Há ainda o quartel onde hoje está a Corpo de Intervenção da PSP, mesmo à frente dos Lanceiros, que era uma unidade de artilharia e depois foi de cavalaria”. 
Mais tarde é ali instalada a companhia dos Lanceiros. “Foi um regimento criado por D. Pedro, inicialmente constituído por militares estrangeiros de certa forma contratados, alguns até mercenários, para proteger a rainha”, diz Marcos Andrade. “Esses militares estavam sob as ordens de um oficial inglês, o coronel Bacon, que aliás já tinha andado por cá nas guerras peninsulares e foi contratado pelos liberais. A partir de 1844 recebe a denominação de Regimento de Cavalaria N.º 2 de Lanceiros da Rainha, aí já sob a direção de um oficial português”. 

Segundo o militar, a história do Regimento esteve sempre muito ligada à própria zona onde se inseria. “Foi sempre um regimento muito próximo à corte que estava ali em Belém ou na Ajuda. Por exemplo na revolta dos marechais defendeu o marechal Saldanha e em 1910 esteve na rua do lado da monarquia”, conta o coronel. 

Já no século XX, são ali formadas também companhias da Polícia Militar. E, 1 de julho de 2015, o regimento de Lanceiros nº. 2 deixou a Calçada da Ajuda – e assim o histórico quartel – e foi para a Amadora.