Carlos Sá: “Limites? Não sei se estou lá perto nem quero saber”

Correu no deserto, na montanha e na neve, com 50 graus ou temperaturas muito abaixo de zero. Sem nunca deixar os treinos para segundo plano, o foco está agora virado para a organização do Mundial de Trail, que acontece dia 29 no Gerês

Em criança corria até casa só para chegar primeiro que os pais e fazia sprints de bicicleta para ultrapassar o autocarro da escola. “Há coisas que nascem contigo”, diz ao i. Carlos Sá já correu na Gronelândia, nos Pirenéus, no deserto do Sara, e saiu vencedor de uma prova cujo nome da pista – Vale da Morte – já impõe respeito. Mas nem sempre foi assim: chegou a pesar quase cem quilos, fumava dois maços por dia e trabalhava contrariado numa fábrica de têxteis. Hoje, se o ultramaratonista português fosse traduzido em quilómetros e força de pernas, podia dizer-se que é o homem mais rápido do mundo a subir o ponto mais alto da América e de todo o hemisfério sul, fez o Vale da Morte em pouco mais de 22 horas e, para o ano, tem os Himalaias no horizonte. Agora, não pôs as sapatilhas de lado, mas está focado na organização do Campeonato do Mundo de Trail, que no dia 29 de outubro traz ao Gerês mais de dois mil atletas.

Começou a correr com 12 anos, mas só se profissionalizou já muito tarde. O que aconteceu nesse intervalo de tempo?
Comecei a correr influenciado pelo efeito Carlos Lopes e Rosa Mota. Além disso, aproveitei as corridas associadas à celebração de um santo que aconteciam nas freguesias do Norte para ir competindo. Mas aos 13 anos, mal acabei o ciclo, tive de começar a trabalhar, a estudar à noite e, mesmo assim, continuei a correr. Escusado será dizer que não fazia nenhuma das três coisas bem. Aos 18 anos abandonei a corrida, ganhei 30 quilos, comecei a fumar e desleixei-me.
Houve alguma coisa que fez o clique da mudança?
Tinha excesso de peso, fumava dois maços de tabaco por dia, bebia álcool, basicamente deixei de ter qualidade de vida. Para ter uma noção, da garagem de minha casa à porta de entrada são 33 degraus e eu não os conseguia subir sem parar a meio. Com o nascimento dos meus filhos quis voltar a ser um exemplo, foi esse o grande ponto de viragem. Mas tenho noção de que inverter esse ciclo foi a maior vitória da minha vida.
Ainda se lembra da primeira corrida que fez depois de tanto tempo parado?
Por acaso não, até porque foram várias. Comecei por fazer BTT, jogar futebol de salão com amigos, fazer trekking na montanha, escalada, mas para isso tudo percebi que precisava de treinar. Foi aí que comecei a correr.
Chegou a fazer corrida em estrada?
Na altura em que comecei a correr nem existia a palavra trail. Mas como sempre vivi em meio rural, rodeado de montes, mesmo quando o treino era de pista ou de estrada, era impossível fugir à montanha. Sem querer, treinei desde sempre para uma modalidade que ainda nem existia por cá.
Em que é que o trail é diferente da corrida de estrada?
Em primeiro lugar, o respeito pela natureza. Além disso, a corrida de estrada ainda está muito associada à competição, enquanto o trail tem um espírito de convívio maior, somos quase uma família. Mas ainda me lembro bem do início, altura em que provas como o Mont-Blanc (170 km nos Alpes) eram consideradas uma loucura, e o Trail da Serra d’Arga tinha sempre os mesmos participantes, enquanto hoje as inscrições se esgotam rapidamente. Tornou-se uma modalidade completamente democrática, chega até a mais pessoas que a corrida de estrada. Para o trail, o céu é o limite.
Atualmente vive da corrida. Isso é possível em Portugal?
Pelos vistos, sim (risos). Em 2012 fiquei desempregado e, ao mesmo tempo, a Berg procurava um rosto português para se internacionalizar. Com os patrocínios que se seguiram, consigo manter um calendário cheio, mas é muito diferente de ser profissional lá fora. Quem é profissional no estrangeiro tem uma equipa que lhe trata de tudo e ele só tem de pensar em correr. Ser profissional é isso mesmo, não pensar em mais nada a não ser correr. Isso não consigo, tenho de me dedicar a outras coisas em paralelo.
Costuma dizer que pior que as provas são os treinos. Como são os seus?
Se estou a treinar para um Montblanc, são 30 a 40 dias em treino isolado na montanha. É muito duro. 
Mas tem sempre uma prova em vista?
Sim. Um ultramaratonista faz duas provas muito longas por ano e, para isso, treino praticamente todos os dias. Para ter uma ideia, estima-se que para uma prova como a Badwater (217 quilómetros, feitos numa única etapa), o treino tenha de ser o dobro da prova, ou seja, pelo menos 400 quilómetros. Eu fiz metade e consegui vencer. O trail não é matemática, é sempre uma surpresa.
Para esse tipo de provas é preciso combustível. Como é a sua alimentação?
Muitos hidratos e proteínas, basicamente. Quase não tomo suplementos, prefiro alimentos não artificiais. Por exemplo, só como legumes da minha horta e carne dos frangos e dos coelhos que crio em casa. Já no restaurante, prefiro peixe. No geral, como muito: em vez de um pratinho gourmet de massa, como um ou dois pratos cheios.
Para se dedicar à corrida, de que é que se abdica?
Do descanso, principalmente, mas o que mais me custa é abdicar do tempo em família. Esta época tive provas todos os meses, mas são provas que exigem que esteja fora de casa mais de 15 dias a cada mês. Ver a minha filha chorar de saudades custa muito.
Quando comunica à família que vai correr na Gronelândia ou atravessar um deserto, o que lhe dizem?
Agora já aceitam mais facilmente. Se não fosse um projeto familiar, das duas uma: ou já não estava casado ou já não corria (risos).
É que estamos a falar de provas em que se chega ao limiar da sobrevivência.
Nunca passei por uma situação para lá do limite, mas já estive muito perto do fio da navalha. Se tudo corre bem, até parece fácil, mas basta um pequeno pormenor para tudo correr mal. Na Gronelândia apanhámos tempestades violentas todos os dias, ventos de mais de 100 km/hora, sem líquidos para ingerir. De manhã recolhíamos gelo para beber durante o dia, colocávamos a garrafa junto ao corpo, mas mesmo debaixo de camadas de roupa, a água congelava. Chegávamos ao fim do dia desidratados e completamente de rastos. Mas durante uma travessia como esta, só há duas hipóteses: ou fazemos ou fazemos, não há como ficar a meio.
De onde lhe vem esse espírito de sacrifício?
Acho que já nasceu comigo. Em miúdo ia de bicicleta para chegar primeiro que o autocarro da escola, dava uma corrida para chegar a casa antes dos meus pais. Sempre tive essa competição comigo. Acho que, além de físico, é um trabalho muito mental.
A cabeça também se treina?
Também. Temos de ser muito focados. Na ultramaratona, o corpo vai quebrar e é aí que entra a cabeça. É preciso uma grande resiliência e força de vontade para não deixar o corpo ir abaixo.
É nisso que pensa durante uma corrida longa?
Temos de estar preparados para o que vamos enfrentar. Se vamos fazer um trail pela primeira vez, é bom ir fazer um reconhecimento do terreno, caso contrário, à primeira subida pensamos: “O que raio estamos aqui a fazer?” Se fizermos o trabalho de casa, com treinos, conhecimento do terreno e criando objetivos reais, durante a corrida é nisso que vamos pensando. Além disso, sabendo que gasto 500 calorias por hora, vou calculando que de 20 a 30 minutos tenho de ingerir energia e beber meio litro de água.
Numa prova, o que é mais difícil de ultrapassar? A sede, o frio, o calor, a fome?
Ao contrário do que se possa pensar, o frio é mais difícil de ultrapassar que o calor. Dou-me bem nos dois ambientes, mas o frio é mais perigoso. A linha entre a vida e a morte é muito ténue nesse ambiente. Temos de nos manter sempre ativos, basta parar uns segundos para entrar em hipotermia.
Em que é que o atletismo é diferente dos outros desportos?
É um desporto individual e, por isso, exige uma força mental extra. Mas apesar de individual, tem um caráter bastante solidário. As pessoas correm sozinhas e sabem o que cada uma passa, daí que haja essa entreajuda. Pior que a corrida, só a natação. Já viu o que é passar horas a olhar para o fundo da piscina? Ao menos, eu vejo a natureza. 
E imagino que tenha passado por sítios que só mesmo através do trail se conseguem conhecer.
Claro. E mais: nos últimos trails temos até aberto novos caminhos. Conseguimos fazer várias surpresas aos habitantes das aldeias por onde passam as nossas provas.
Toda a gente pode correr?
Se não tiver problemas de saúde, claro que sim. Mas há que ter atenção aos treinos, para que não sejam exagerados. Tenho muita gente a esperar na meta para me agradecer o exemplo e que dizem que perderam 30 quilos com a corrida mas, às vezes, em apenas um ano. Isso é muito perigoso.
Mas vê isto da corrida como uma moda?
Mais do que uma moda, é uma necessidade. E apesar de já se ver muita a gente a correr na rua em Portugal, continuamos bastante atrás dos países mais de-senvolvidos. Mesmo assim, é bom saber que as pessoas saíram das passadeiras do ginásio e vão para a rua, sem medo que se ache que estão a correr atrás de alguma coisa ou a fugir de alguém.
Há ainda algum cenário onde gostasse de correr?
Himalaias. Mas já está previsto correr lá para o ano. Foi o alpinismo que me trouxe para as corridas, daí este meu fascínio.
Já encontrou o seu limite?
Há dias bons, dias maus, dias em que desisto, mas ainda não cheguei ao meu limite. O nosso corpo surpreende-nos sempre e, se quiser, ninguém encontra o seu limite.
Mas acha que está perto de lá chegar?
Não sei e nem quero saber.