“Para as pessoas se rirem é preciso muito sofrimento deste lado”

Quando começou a subir ao palco para contar piadas, Salvador Martinha trancava-se em casa a preparar tudo ao pormenor. Agora, já não abdica de nada. Ainda assim, os nervos de palco vão aparecer “cinco minutos antes”. O humorista trabalhou na RFM até ao verão, mas saiu por estar cansado de trabalhar em direto no período…

Aos 33 anos, Salvador Martinha diz que já aprendeu a dominar as inseguranças, apesar de ainda haver algumas que se vão adicionando ao carrinho de compras. Mas, pelo menos, já tem tudo identificado. Mal seria se ainda não o tivesse feito, sobretudo pela profissão que escolheu: perdeu–se um publicitário e ganhou-se um humorista que hoje já não tem medo de andar no arame sem uma rede por baixo – é o mesmo que dizer que se põe à frente de mil, duas mil ou três mil pessoas a contar piadas ao longo de hora e meia. Salvador começa hoje no Teatro Tivoli, em Lisboa, uma nova temporada de stand- -up comedy com um espetáculo chamado “Tipo Anti-Herói”. Quer salvar as pessoas de coisas chatas e transformá-las em coisas para rir. Antes de subir ao palco e dar um salto para o desconhecido, porque são sempre assim os primeiros dias de uma nova temporada, sentou-se à conversa com o i para falar do seu anti-heroísmo, dos seus superpoderes e também dos seus medos. 

A história das estórias está cheia de anti-heróis, de diferentes perfis. O público consegue encontrar neles uma identificação sempre pelos traços de personalidade: por serem mais tímidos, passivos e indecisos; por serem rebeldes simpáticos; ou por serem egocêntricos, ainda que a favor do bem coletivo. Que tipo de anti-herói quer ser o Salvador Martinha?
Sou um rebelde simpático. O rebelde antipático é o Pablo Escobar, que é tudo a favor dele! Já houve quem me tenha falado do Charlot, porque simpatizavam com ele e queriam levá-lo para casa. Depois há outros humoristas que a malta curte, mas não quer levá-los para casa. Eu acho que estou mais perto do Charlot: creio que a malta me acha fofinho.
Mas iria dar jeito em casa de alguém?
Aí é que está o grande engano, porque eu não dava jeito para nada! Sou péssimo em tarefas de casa. Sempre tive empregadas desde puto, portanto cresci a dizer: “Ah, agora um lanchinho é que era. Se alguém me fizesse agora um tabuleirinho…” É preciso montar alguma coisa na parede? Eu resolvo, não há problema: tenho aqui o número do eletricista. Os novos homens continuam a resolver os problemas, mas contratando outros homens.
Já há empresas que se aproveitaram disso. Até há o slogan “fazemos tudo o que o seu marido não faz”.
Isso é brutal. Não sei se consegues pendurar um quadro. Se consegues, é sempre a maior aventura da tua semana. Eu, por exemplo, não sei dar nós de gravata. Cada vez que tenho um casamento, arranco de casa sem gravata, ligo a um amigo para sair da missa e é ele que dá o nó. Vivo da amabilidade de outros homens. 
Já houve alturas em que tenha sido o anti-herói tímido e passivo?
Sim. Claro. Até ser mais confiante na minha personalidade era muito tímido e indeciso. Depois é que fui ganhando confiança. 
Como deixou essa timidez?
Foi quando fiz um curso de formação de atores, com uma série de aulas como técnica de movimento de corpo que me permitiram ganhar confiança. Ajudou-me a identificar em que é que tinha confiança e em que é que não tinha. Às vezes não dominamos bem os medos e inseguranças, e isso faz com que andemos um bocado perdidos.
Hoje já domina os medos ou começou a ignorá-los?
Seria uma ilusão pensar que temos uma visão a 100 por cento de nós. Há sempre uma parte que não dominamos mas, hoje, a maior parte dos meus medos estão identificados.
Quais são os medos que perduram?
São coisas muito íntimas. Aquelas coisas que, quando vamos a um psicólogo, demoramos mais tempo a dizer. Podes estar três anos num psicólogo e nada. Fiz três anos de psicoterapia e notava isso, houve uma ou duas coisas que nunca cheguei a dizer. Mas sei quais são.
Acredito que tenha tido, mas que hoje já não tenha, o medo de estar diante de duas mil ou três mil pessoas.
O medo existia no princípio, quando não havia preparação e tudo era um salto para o desconhecido. Hoje já não tenho esse medo porque já me preparo de uma forma profissional. Quando comecei, se tinha uma data marcada para daqui a três semanas, fechava-me em casa a preparar tudo e não fazia mais nada. Hoje em dia, estou na boa: venho aqui ao jardim falar contigo, amanhã [terça-feira] vou ver o Sporting. Não abdico de nada. Mas vou ficar com os nervos de palco cinco minutos antes.
Como nasce esta ideia do anti-herói?
Peguei na ideia do meu nome. Eu, que me chamo Salvador e tenho nome de herói, nunca salvei ninguém. Os bombeiros já salvaram, mas chamam-se Joel. Chegou a altura de eu tentar. Se conseguir, acabo por ser um super-herói, mas é uma figura batida e as séries de hoje têm anti-heróis: é mais cool. E eu também não tenho as características clássicas do super-herói: não sou bonito, não sou alto, não sou forte. 
Mas tem algum superpoder?
Jesus multiplicava o pão – algo que, no meu entender, também foi sobrevalorizado porque, quando muito, inventou o conceito de padaria. Eu tenho o superpoder de transformar coisas que chateiam em coisas para rir. 
Escrever piadas é um processo contínuo? Só na altura de montar um espetáculo é que vai perceber quais as que se enquadram para levar ao palco?
O meu último espetáculo foi feito até março ou abril. A partir desse momento começo a entrar no chip do novo espetáculo, a escrever piadas. Não com o mindset do “Tipo Anti-Herói”. Neste caso, passou-se um episódio em Formentera em que acabo por salvar uma situação de porrada – sendo eu um pussy.
E o que aconteceu?
É a história que conto no espetáculo. Basicamente, a minha namorada queria que eu batesse em duas bestas quadradas e a história conta como é que eu me salvei dessa situação.
Como é o Salvador no processo criativo? 
Sou insuportável. Tudo o que faço é para a escrita, o que às vezes perturba um bocado as minhas relações sociais. Fico obcecado. Idealmente devia ficar fechado num hotel até à estreia e não ver ninguém, mas infelizmente fui criando laços sociais e até tenho uma filha. Repara a pressão que tenho: estou a vender bilhetes para as pessoas se rirem! E para as pessoas se rirem é preciso muito sofrimento deste lado.
Então tem medo de que as pessoas não se riam do que diz?
Tenho. Mas passo logo para a outra piada! É isso que o stand-up comedy tem de bom: a piada foi má, mas segue-se logo para outra. Se for Shakespeare e estiver a ser mau, ainda tens de aguentar mais uma hora e meia para a peça acabar!
Costuma andar à caça da piada?
Sim. Por exemplo, tenho uma parte do espetáculo que fala sobre bolachas e cereais. Então peguei na minha mulher e na minha filha e fomos para o supermercado ver cereais. Envolvo a minha família no processo e a minha mulher tem uma paciência incrível, mas queixa-se de que só falo com ela para ver piadas. Muitas vezes já só diz que tem piada porque está cansada de me ouvir. 
No texto de apresentação do espetáculo diz-se que um dos problemas de que precisamos de ser salvos é de namoradas que adormecem a ver séries. É impressão minha ou está a mandar uma dica lá para casa?
Claro que sim! Ela está sempre a levar na cabeça! Isso é para ela.
O Salvador não adormece quando está a ver séries?
Raramente. Acho uma grande traição. Prefiro que ela me seja infiel. “Olha, a Paula é uma grande porca, varreu, mas não adormeceu a ver ‘Mad Men’ e vê ‘Game of Thrones’ até ao fim.” Se a Paula for muito certinha e adormece a ver séries: foi um erro. Conseguia melhor. Mas isto é válido para os dois lados, com a agravante de o homem ser pior porque nunca assume que adormeceu.
Tornou-se também o primeiro humorista português a ter um espetáculo de stand-up comedy no Netflix. Costuma ver-se muitas vezes na televisão ou não é narciso a esse ponto?
Não sou muito narciso. Só vi esse espetáculo na altura de editar. Vi cinco minutos na televisão e desliguei.
Não me diga que não achou piada.
Não, custa-me porque há sempre uma sensação de imperfeição nas coisas. Mais vale ter a memória de que correu bem.