Amadora BD. A arquitetura do tempo e do espaço aos quadradinhos

O Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora é uma das grandes referências europeias da 9.ª Arte. Até 6 de novembro há muitas tiras para ler, reflexões para fazer e, já agora, soprar as 70 velas a Lucky Luke

É no chão alcatifado com uma espécie de relva sintética que os pequenos visitantes se vão sentando, de pernas cruzadas, encontrando um natural conforto infantil que lhes aumenta a predisposição para escutar as histórias dos mais velhos. E aqui, no Fórum Luís de Camões, na Brandoa, há muitas histórias para ouvir – e para ler. Os monitores do Amadora BD que acompanham este grupo que vem da escola EB1 de Águas Livres vão atirando perguntas ou sugestões de observação para os desenhos e imagens que vêm na exposição “O Tempo do Gigante”, de Carmen Chica e Manuel Marsol. “O que é que veem aqui? Veem pessoas? Ou só veem animais?” Os miúdos levantam a mão a pedir a vez para responder, mas acabam por gritar em uníssono as respostas.

Há 27 anos que assim é, mas cada vez com mais frequência nos últimos anos. O Amadora BD – Festival Internacional de Banda Desenhada tornou-se uma paragem obrigatória para escolas de todo o país e já também para alunos espanhóis que visitam aquela que se tornou uma das principais capitais europeias da 9.a Arte. Mas há quase dois festivais distintos no Amadora BD, pelo menos no que à programação diz respeito: “Um que decorre ao fim de semana para visitantes individuais que vêm em grupos, em família ou com amigos para passear, para terem um bom dia a fruir banda desenhada, a ler, a experimentar coisas; e outro, durante a semana, principalmente com as visitas escolares, desde o ensino básico ao ensino superior, incluindo universidades seniores”, explica Nelson Dona, o diretor do Amadora BD.

Na manhã em que o i visitou o Fórum Luís de Camões, ainda se recuperava de um fim de semana de abertura em cheio. O diretor do festival revelou que, até dia 6 de novembro, espera voltar a atingir o número de 30 mil visitantes. A exposição central, no primeiro andar, tinha poucas pessoas, e a equipa de produção ia aproveitando para dar uns ajustes nas molduras recheadas de tiras, de quadradinhos com origem no talento e arte de mãos dos quatro cantos do mundo. No piso inferior, onde se encontram mais 11 exposições, como também é habitual, é por onde se vão passeando dois ou três grupos de alunos. Gabriel Rodrigues é professor da escola EB1 de Águas Livres, aqui bem perto do fórum, e é a segunda vez que vem até à Amadora BD com alunos. “É trazer os miúdos ao mundo deles”, começa por dizer. O professor explica que a resposta dada pelos alunos é sempre muito positiva: “Claro que há uns que gostam mais que outros, mas sinto que estas visitas lhes despertam os sentidos, a criatividade e a imaginação.”

Mas uma das maiores lições nestes 27 anos de Amadora BD é a demonstração de que a banda desenhada é também um veículo de pontos de vista. “Seja com a exposição central, através das propostas de leituras dos comissários, seja com outras exposições que tratam de temas mais irreverentes ou pertinentes do ponto de vista sociopolítico ou económico, a nossa intenção é levar as pessoas a fazer perguntas. Não é um objetivo nosso divulgar conceitos e ideias ou passar sentidos ideológicos. O que queremos é que a banda desenhada permita fazer perguntas e que o leitor se autoquestione.”

Tempo vs. espaço A edição deste ano do Amadora BD nasceu de uma sinergia com a Trienal de Arquitetura de Lisboa. “Não queríamos que o tema fosse algo como ‘A Arquitetura e a Banda Desenhada’. Encontrámos então algo que fosse intrinsecamente relevante para as duas artes, mas em que a banda desenhada fosse determinante e vanguardista. Dentro desta arte da narrativa, queríamos abordar as questões do espaço e do tempo”, conta Nelson Dona.

Para demonstrar a ligação destas duas variáveis à banda desenhada, a organização convidou Eduardo Côrte-Real, do IADE, e Susana Oliveira, da Faculdade de Arquitetura de Lisboa, para serem os comissários da edição deste ano. Através dos exemplos de três tipos de personagens – a clássica, Tintim; a modernista, Corto Maltese; ou a contemporânea, Moebius –, verificamos que o tempo e o espaço são dois conceitos indissociáveis na 9.a Arte em detalhes como os tempos narrativos; a relação entre as personagens e o espaço que habitam; ou a passagem do tempo sobre as obras.

“O festival não são só as exposições”, sublinha o diretor. “É também o encontro de artistas do mundo inteiro.” Até dia 6 de novembro passam pelo Fórum Luís de Camões nomes de várias nacionalidades para encontros com o público. Algumas estreias, alguns repetentes e até artistas que já se mudaram de estiradores e bagagens para Portugal. É o caso do brasileiro André Diniz, autor de obras como “Que deus te abandone”, “Homem de Neandertal” ou “A República Cantada: do choro ao funk, a história do Brasil através da música”, que em Portugal edita os seus livros pela Polvo Editora. “Eu já ando nas BDs desde 1994 – sou como o tetravô dessa garotada”, ri-se. “E já então no Brasil, desde o tempo da BD mais autoral, ouvia-se falar aqui do festival da Amadora!” A seu lado está o compatriota Eloar Guazzelli, um estreante no festival. Tanto André como Eloar vêm mostrar um pouco da “movida dos quadrinhos” brasileiros, que são uma espécie de retrato da diversidade brasileira. “É um país muito inspirador, muito assustador, que nos dá a oportunidade de trabalhar múltiplos temas”, diz-nos Eloar, feliz por estar finalmente num evento que desejava há muito conhecer. “Eu tinha inveja de quem já tinha vindo! Tenho já 30 anos de trabalho e, entre os artistas brasileiros, este é um festival de que se fala muito.”