Mundial 2022. “Drink teams” ou “drink tea”? Eis o grande dilema do Catar

Organizar uma fase final de um Campeonato do Mundo num país islâmico tem as suas questões pertinentes. Alguém imagina hordas de ingleses, irlandeses, alemães ou holandeses passarem um mês sem beberem uma cerveja?

DOHA – Pela primeira vez na sua longa história que começou em 1930, no Uruguai, o Campeonato do Mundo de futebol terá uma fase final num país islâmico, com todas as diferenças que isso acarreta. As diferenças não são más, pelo contrário, podem até ser saudáveis, mas a verdade é que haverá necessidade de as encaixar durante cerca de um mês no pequenino espaço de 11.586 quilómetros quadrados nos quais se juntarão, ao mesmo tempo, equipas representativas de 32 países acompanhadas por adeptos heterogéneos com as suas vicissitudes.

Nunca um Mundial foi tão acanhado, se assim podemos dizer. A distância mais longa entre dois estádios será de 57 quilómetros. Algo que põe certamente em sobressalto as forças de segurança de um país com cerca de dois milhões de habitantes, sendo que a grande maioria deles são imigrantes e muitos com contratos a prazo ou até sem contrato algum. O esforço para erguer infraestruturas é visível no esventrar da cidade de Doha e, para dar um exemplo bem à moda portuguesa, pode dizer-se que o Catar é Doha e o resto é paisagem – nem sequer muito luxuriante, já que se resume a areia, areia, palmeiras e camelos.

Olho em volta e imagino o que será esta cidade invadida por brasileiros, argentinos, nigerianos, alemães, ingleses, russos, japoneses e o mais que se está para saber. Uma cidade cuja vida social se remete para hotéis e centros comerciais, onde as lojas comezinhas se encontram apenas nos subúrbios desinteressantes e não existem esplanadas, restaurantes ou cafés, pelo menos na nossa forma ocidentalizada de ver o mundo, que não se me cola à pele mas que marcará, certamente, a maioria dos seus visitantes daqui a seis anos.

Quando Sepp Blatter, o antigo presidente da FIFA, num discurso de Abril de 2010, afirmou – “O mundo árabe merece um Campeonato do Mundo; são 22 países e nunca tiveram essa oportunidade” – sabíamos que tal ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Não direi que pouco importa agora discutir as acusações de corrupção que caíram sobre os dirigentes da FIFA escasso tempo após a decisão ter sido tomada. E não o direi porque elas foram graves, muito graves até: Jack Warner foi acusado de ter recebido 4 milhões de dólares para abrir um centro educacional no seu país, Trindade e Tobago; Jacques Anouma e Issa Hayatou, da Confederação Africana de Futebol, embolsaram alegadamente um milhão e meio de dólares cada um para influenciarem os votos dos países africanos a favor do Catar. De tal forma graves que acabaram por comprometer Blatter e a custar-lhe o lugar que já ocupava há 18 anos. Mas algo sobra de tudo o que se passou: o Mundial de 2022 será mesmo no Catar, a menos que algum fenómeno de última hora aconteça.

Questões Foi possível perceber que ainda não há, neste momento, muito para ver desse Mundial ainda distante. O país mexe e muito, mas há imenso por fazer. Não admira. Dias antes da abertura da fase final do Campeonato do Mundo de 2014, no Brasil, eram frequentes as alarmantes notícias de estádios por acabar, centros de imprensa sem condições, aeroportos de insuficiente capacidade para receber fluxos de mais uns milhares largos de pessoas. Estive lá, em várias cidades, e pude testemunhar que nada houve que prejudicasse seriamente o normal decorrer da competição.

Aproveitando a XXI Edição da Assembleia Geral da Associação dos Comités Olímpicos Nacionais, Doha tornou-se o centro do desporto olímpico durante cinco dias. O evento, como seria de esperar, trouxe ao território do Golfo Pérsico centenas de jornalistas que se mostraram ávidos por perceberem em que ponto estava o Mundial de 2022. E que colocaram, sempre que possível, mesmo fugindo ao cerne dos acontecimentos que se iam desenrolando, questões pertinentes. Em 2013, o jornal inglês “The Guardian” publicou uma reportagem sobre o trabalho escravo no Catar. A polémica explodiu. A Amnistia Internacional cavalgou a onda. Milhares de trabalhadores indianos, paquistaneses, filipinos e nepaleses estariam a trabalhar como operários em construções sem condições, sem salários garantidos, sem seguros e com os seus passaportes cativos nas mãos dos patrões. O assunto é sensível. O presidente da Federação de Futebol do Catar teve a oportunidade de se referir a ele na última terça-feira. E, perante a imprensa internacional, Hamad Bin Khalifa Bin Ahmed Al-Thani, assim mesmo por extenso, membro da família real catari, afirmou: “Abrimos inquéritos a todas as acusações e procurámos saber as condições dos operários que vivem nos campos de trabalhadores. Estamos abertos a que os visitem e testemunhem aquilo que lá se passa. Sabemos que morreram alguns operários em acidentes de trabalho, lamentamo-lo muito, estamos solidários com as suas famílias, e prometemos que vai haver mais cuidado no futuro”. Politicamente correcto. Não nos foi fechadas visitas a lado algum, mas também não é fácil obter testemunhos de gente que vive em situações de total subalternidade. Nem em Doha, nem em Lisboa, nem em Oronhe ou Vale do Grou, que ficam lá pelas minhas beiras.

Álcool Eis outra das questões em aberto para o próximo Mundial. Não posso dizer que, dos muitos países islâmicos onde pus os pés, do Irão ao Egipto, da Jordânia ao Omã ou ao Bangladesh, o Catar seja dos mais fechados a alguns hábitos ocidentais que a religião muçulmana nega. Caso do álcool, por exemplo. Vamos e convenhamos: será possível organizar uma fase final de um Campeonato do Mundo na qual se impeçam as hordas de ingleses, alemães, holandeses, e por aí fora, de se encharcarem em cerveja, pelo menos nos intervalos de tempo em que não estão fechadas nos estádios? Eu responderia de imediato que não. Encontra-se álcool sem restrições nos hotéis e em alguns bares mais recatados de Doha e é vendido tranquilamente a quem apresente um passaporte estrangeiro. Os preços são altos, mas como já escrevi um pouco mais acima, esta é uma cidade cuja vida social se centra sobretudo em hotéis. De qualquer forma como tornar os adeptos dos “drink teams” em adeptos do “drink tea”, essa sim, a bebida nacional catari? O director-executivo do Comité de Organização do Mundial de 2022, Hassan Abdullah al Thawed, já teve oportunidade de anunciar: “Vamos permitir o consumo de álcool durante o Mundial. Teremos ‘fan-zones’ em lugares específicos onde a venda de álcool será livre”. Sábias palavras. Veremos se as últimas.

Que falta muito para a aventura mundialista do Catar, todos sabemos. Que houve muito franzir de narizes perante a escolha de um minúsculo e insignificante país enclavinhado na Arábia Saudita e cercado de mar por todos os lados menos por um, isso ninguém tem dúvidas. Ainda por cima quando, quatro anos antes, o organizador da prova vai ser a imensa Rússia, mesmo que para o caso reduzida de Sampetersburgo às faldas dos Urais e às estepes do Don, do saudoso Miguel Strogoff. Uma discrepância de escolhas, de opções. Mas também é pela sua imensa diversidade que o futebol se tornou o desporto mais popular do mundo.