Lisboa. A noite natural que nunca mais foi escura

Desde o final do século XIX que Lisboa tem iluminação elétrica – uma pequena evolução que, na verdade, levou uma mudança do quotidiano da população. Hoje a linha entre o dia e a noite mede-se mais pelo horizonte do que pelos serviços disponíveis: há cada vez mais espaços permanentemente abertos

Sair de casa depois do sol ter caído – e fazer deslocações na total escuridão – é uma experiência que muitos de nós desconhecem. Mas esta foi a realidade de grande parte da população até, grosso modo, ao 25 de abril: a iluminação pública foi, durante muito tempo, uma realidade reservada às grandes cidades.

Até aos anos 70 do século XX, a eletrificação rural do país estava por cumprir. É a partir dos anos 80 a iluminação pública se torna parte integrante da paisagem nacional. E só então a escuridão deixa de ser um impedimento.

Uma sociedade sedenta de luzes Mas em Lisboa a fronteira entre o dia e a noite – e a visibilidade das estrelas – começou a ser apagada há muito.

A capital tem iluminação pública elétrica desde o século XIX , muito embora estivesse então circunscrita à zona central da cidade.

Até à chegada da eletricidade, os candeeiros funcionavam a gás, azeite e petróleo. E, nas periferias, continuaram a sê-lo até ao século XX. Mesmo no bairro da Bica, por exemplo, houve candeeiros a gás até 1965.

Ainda assim, no centro nevrálgico da capital, a passagem à eletricidade foi mais rápida. Em 1878, o rei D. Luís ofereceu à câmara municipal “seis candeeiros de lâmpadas de arco tipo Jablochkoff, que tinham sido usados pela primeira vez, a 28 de Setembro desse ano, na Cidadela de Cascais, por ocasião das festas de aniversário do príncipe D. Carlos”, lê-se no site da Revelar LX.

Segundo a investigação do historiador Bruno Cordovil da Silva Cordeiro – que escreveu uma tese de mestrado sobre o tema intitulada “A iluminação pública em Lisboa e a problemática da história das técnicas” –, “tanto a indústria do gás de carvão, como a indústria petrolífera e ainda a indústria elétrica encontraram nas aplicações dos seus produtos à iluminação artificial a génese da sua difusão maciça num longo século XIX sedento de “luzes””.

Mas voltemos aos tais candeeiros, os que foram ofertados pelo Rei nesse século que ansiava por luzes. Foram instalados na rua dos Mártires, no largo do Chiado e na varanda do Hotel Gibraltar. Foram compradas seis lâmpadas iguais “às que iluminavam, na altura, a praça do Teatro da Ópera em Paris”. A iluminação do espaço público era então da responsabilidade da Companhia de Gaz Lisbonense. E a ‘evolução’ das lâmpadas acabou, depois da experiência, por ser posta na prateleira – a Lisbonense “argumentava ser necessária prudência e observação da nova energia”.

Foi preciso esperar até 1887 para que a câmara municipal celebrasse um contrato que previa a eletrificação da avenida da Liberdade e da praça dos Restauradores. Tal só veio a acontecer em maio de 1889, quando “a iluminação eléctrica é instalada em definitivo no Chiado, rua do Ouro, praças D. Pedro IV, do Município e dos Restauradores e na avenida da Liberdade, movimentando as famílias e a circulação das pessoas pela zona nobre da baixa, atraídas pela novidade e pelo progresso, tecendo-se comparações com a moderna cidade de Paris. Era o fim da lamparina como se apregoava na ruas de Lisboa”, diz a página da Revelar LX que cita os investigadores Abílio Fernandes e Ana de Matos Faria.

O fim da noite A eletrificação das cidades e da iluminação pública é um ponto pequenino na História mas, em termos práticos, mudou não só os horários como os comportamentos das populações. De repente, sair para a escuridão da noite deixou de ser um problema porque essa escuridão, simplesmente, já não existia.

Para o historiador Joel Serrão – que em 1967 discorreu sobre a questão da ‘noite natural e noite técnica’ –, as mudanças da história iluminação são imprescindíveis para a compreensão do quotidiano das populações.

Hoje, a noite natural nas cidades perdeu toda a escuridão. E a nível de serviços, aproxima-se cada vez mais do próprio dia. Há cada vez mais espaços permanentemente abertos, reflexo de uma sociedade cada vez mais alheia às rotações da terra.

Um ginásio que não fecha, um supermercado onde pode comprar alfaces às três da manhã e sítios para comer francesinhas a meio da noite já são realidades, embora ainda circunscritas às principais metrópoles. Nova Iorque, por exemplo, é por excelência a cidade que não dorme (ver ao lado).

Por cá, mostramos-lhe, nas páginas seguintes, alguns locais em Lisboa e no Porto que pode encontrar abertos no pico da noite. Um roteiro para noctívagos ou, simplesmente, para quem trabalhar por turnos.