Tinder bate recorde em Portugal

As aplicações informáticas como o Tinder vieram revolucionar o sexo e o amor ou apenas aceleraram características que já estavam presentes nas nossas sociedades?

Clara é jovem e inteligente. Olhando para ela, ninguém acharia que precisa do Tinder para encontrar pessoas. Concorda? Ela não. É completamente contrária aos termos em que esta questão está a ser colocada. “Não vejo isso como uma alternativa do tipo: se não consigo conhecer pessoas na ‘vida real’, recorro ao Tinder. O Tinder é mais uma forma que me permite conhecer pessoas.”

A aplicação Tinder existia, em 2015, em 196 países, com 50 milhões de utilizadores e, de acordo com os dados da empresa, promove 26 milhões de matches por dia, o nome que se dá quando dois utilizadores se manifestam interessados um no outro. Segundo os dados publicados no Globalwebindex de 2015, em média, os utilizadores ligam-se 11 vezes por dia, com as mulheres a gastarem oito minutos por sessão, e os homens 7,2 minutos. Por dia, os 50 milhões de utilizadores do Tinder gastam, em média, 90 minutos por dia com a utilização. Portugal está no top-20 dos países que utilizam o Tinder, fazendo os portugueses 127 milhões de swipes [deslizar do dedo para escolher ou rejeitar uma pessoa] por mês.

A psicóloga clínica e investigadora do ISPA Ana Carvalheira justifica a popularidade deste tipo de aplicações e o seu papel social numa reportagem da “Fisga” com texto de Bernardo Mendonça. “São sujeitos que sempre tiveram dificuldades em flirtar, abordar mulheres, e depois de terem descoberto o Tinder tem sido um ver se te avias. Por vezes, o Tinder superou-me a mim própria enquanto psicoterapeuta nos resultados pretendidos. O Tinder tem particular vantagem para os tímidos, os introvertidos, os inseguros, os que têm menos recursos sociais, porque ali estão mais protegidos da rejeição, ensaiam comportamentos de sedução com mais controlo e conseguem encontros imediatos que de outra forma não eram possíveis”, garante a investigadora, que usa a metáfora do aquário. Para ela, é a diferença entre fazer a pesca no mar, perdendo muito tempo, e lançar a cana num aquário cheio de peixe em que as probabilidades de “pescar” alguém são muito maiores. Clara não está nada de acordo com estes argumentos, não vê a sua prática como forma de ultrapassar a timidez, mas como forma de aumentar as possibilidades e de controlar os perigos: “Acho muito mais seguro estar a engatar no Tinder que ir para um bar e dar conversa a uma pessoa que não conheço e não sei se é um serial killer”, diz. Para Clara e os seus amigos, não é nenhum problema e não tem qualquer estigma usar o Tinder. “Na minha idade, a grande maioria das pessoas que eu conheço usa esta aplicação.” No entanto, confessa que não está a utilizá-la atualmente: “Apaixonei-me e, neste momento, não sinto a necessidade de conhecer mais ninguém.”

A comunicação mediada por computador veio potenciar as transformações nas relações amorosas e corresponde, segundo defendem filósofos como Zigmunt Bauman, a uma mudança social mais vasta daquilo que se costumou designar como amor-paixão até à situação atual. “E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a ‘experiência amorosa’ à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço”, escreve no seu livro “Amor Líquido”.

Esse conflito entre a paixão com sofrimento e o sexo sem dor é antigo. “O amor é também um prazer”, assim começa Roger Vailland o seu “Esboço para um retrato de um verdadeiro libertino”. Nesta pequena obra, o escritor francês defende que o amor-prazer se opõe tão rigorosamente ao amor-paixão como a liberdade à escravatura. Neste, os amantes aceitam passivamente “o curso inexorável” de um destino que não elegeram. Pelo contrário, o libertino escolhe o objeto do seu prazer.

O libertino não pretende apaixonar-se nem perder-se. Vê na paixão uma alienação que não lhe permite ser livre e controlar a sua vida. A sua verdadeira forma de comportamento está inscrita na frase do Divino Marquês num romance: “Ele poisou em mim o olhar frio do verdadeiro libertino.”

Nada é mais estranho ao espírito da libertinagem que a linguagem das “afinidades eletivas” de Goethe. A ideia da predestinação das almas gémeas é totalmente repugnante para aquele que só segue a liberdade. A geometria variável da cama seria parte desse processo de libertação perante uma moral burguesa. Para Vailland, “a cama é para o amor-prazer o que o dinheiro é para o jogo. Foi precisa uma certa burguesia para imaginar o jogo com feijões e o amor sem ir para a cama”.

Esta escolha de relações “livres” encaixa bem numa sociedade que pretende os outros à distância e em que o maior desejo é a segurança. Vivemos uma época divertida em que nos apresentam, como conquistas civilizacionais, o café sem cafeína, o amor sem riscos e a política sem revolução. Uma campanha de um site de encontros francês proclamava com orgulho: “É possível ter paixão sem ficar apaixonado.” E acrescentava: “Pode perfeitamente estar apaixonado sem sofrer.” Para resolver este embate, o site de encontros propunha uma espécie de “coaching do amor” para menorizar este choque traumático que é um encontro com o outro.