Cândida Almeida: ‘Estou onde quero e cheguei onde quis’

A entrevista foi feita na sua casa, que construiu há uns anos com o marido, fora de Lisboa. Ao longo de mais de três horas, Cândida Almeida partilhou as suas memórias. Tinha 34 anos quando lhe chegou às mãos um processo de terrorismo de esquerda.

recentemente, foi publicada uma biografia de otelo saraiva de carvalho, em que se diz que é militante do pcp, assim como o inspector da polícia judiciária (pj) paulo bernardino, e que por isso ele foi perseguido como fundador das fp-25 (forças populares 25 de abril). como comenta?

o processo das fp-25 contém documentação mais que suficiente para se concluir que naquele processo se investigou, acusou e condenou uma associação terrorista. não teve nada que ver com partidos políticos, nem com perseguições, tratava-se, antes, de investigar uma organização terrorista que feriu e matou portugueses.

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como lhe foi parar o processo?

estava no tribunal de instrução criminal (tic) de lisboa, desde outubro de 1983 e em junho de 1984 preparou-se a acção de buscas, apreensões e detenções. o processo era da minha competência, de acordo com o que estabelecia o estatuto do ministério público (mp): tinha enorme repercussão social e relevância na paz pública, extrema complexidade e excepcional perigosidade. portanto, jamais me passaria pela cabeça atribuí-lo a outro magistrado.

o juiz-conselheiro marques vidal, que na altura estava como procurador-geral da república (pgr) interino, diz que o seu nome lhe foi indicado pelo então procurador-distrital de lisboa, dias bravo. ele achava que tinha mérito e ‘cabedal’ para aguentar.

não sabia disso. eu era a procuradora coordenadora do tic e fui chamada à procuradoria-geral para falar com marques vidal. ele e dias bravo estavam com o director da dccb [direcção central de combate ao banditismo], dias borges, e dizem-me: ‘olhe, temos um processo muito complexo, que vai seguir já para o tic. é o processo das fp-25 e tem gente muito importante’. não me disseram nomes. e respondi: ‘tudo bem, se há um processo, ele tem de ir para a frente’. eu tinha acompanhado pelos jornais as notícias dos atentados e na minha cabeça aquilo só podia ser gente de extrema-direita.

quando soube quem eram as pessoas envolvidas?

no sábado seguinte, na dccb, num encontro com dias borges. a operação seria dois dias depois e eu precisava de ler o processo todo e passar os mandados. abri e vejo as fotografias de dias lourenço, otelo… e por aí fora. fiquei de olhos arregalados: ??‘não pode ser!’. nunca admirei o otelo, mas era uma pessoa que respeitava, era uma figura do 25 de abril, símbolo da liberdade. fiquei na dccb a tarde toda a ler o processo e depois disse: ‘muito bem, amanhã vão lá para eu passar os mandados e vamos para a frente’.

chegou a casa e contou ao seu marido?

contei. ele também nunca tinha sido grande admirador do otelo, mas…

eram ambos de esquerda?

sim. eu não tinha propriamente nenhum partido, nenhuma filiação, mas tinha as minhas ideias, obviamente de esquerda. e o meu marido tinha sido simpatizante do mes.

considerou as provas sólidas?

sim, com excepção dos cinco dirigentes: otelo, mouta liz, dias lourenço, pedro goulart e vítor guinote. havia indícios fortes, documentos, e o testemunho dos ‘arrependidos’, o barradas e o figueiras, mas não era suficiente para os deter. quanto a instigação à violência e à revolta armada não havia dúvidas, mas não havia indícios fortes de que pertenciam às fp-25.

mas que provas tinham?

testemunhos, fundamentalmente de dois ‘arrependidos’ que tinham sido detidos no porto, numa das primeiras acções das fp. o mal da organização foi tê-los abandonado. não os sustentou nem às famílias, e eles eram pobres, eram da base – os chamados soldados. sentiram-se abandonados e, portanto, falaram. mas os soldados não tinham acesso à cúpula superior. sabiam quem tinha participado em assaltos, falavam dos encontros para dividirem o dinheiro e das tentativas de homicídio ou agressões. também disseram que, por vezes, iam a reuniões onde era fomentada a violência e a revolta armada e onde estavam o otelo e os outros dirigentes. simplesmente, isso era pouco e entendi que, em relação a eles, ainda não havia prova suficiente. mas mais: estes dois indivíduos tinham participado na construção daqueles ‘cárceres do povo’ – pequenas celas disfarçadas, debaixo de terra, para onde levariam as pessoas sequestradas. foram encontradas três casas no país e os dois ‘arrependidos’ participaram na sua construção e foram identificá-las no terreno.

como recorda o dia da operação?

eu e o meu marido vínhamos de cascais, onde morávamos, e, à entrada de lisboa, vemos um grande movimento, de polícia na rua. interrogámo-nos: ‘o que se passa? tanta polícia…’. só aí me lembrei do processo. eram 8h30 ou 9h da manhã e eles tinham de ser presentes ao juiz. ainda houve um apontamento mais engraçado. segundo a história romanceada, eu seria comunista e escolhi para o processo uma equipa que eu comandava, da dccb, e que também por isso fui buscar para juiz de instrução o martinho de almeida cruz. isto foi uma teoria que até saiu na imprensa americana (veio cá uma vez uma senhora da new yorker e escreveu isso). a verdade é que chego ao tribunal e o agente da pj que trabalhava comigo, o antónio coutinho, vem ter comigo: ‘que maçada, calhou ao juiz martinho, que dizem que é do prp’ [partido de extrema-esquerda, favorável à acção armada]. e eu disse: ‘não se preocupe, cada um tem de assumir as suas responsabilidades. e ele mesmo sendo do prp, actuará de acordo com a sua consciência jurídica’. o martinho tinha ido a coimbra, porque estava a frequentar uma formação qualquer na universidade, e só chegou ao meio-dia. como chegou atrasado, também diziam que eu o tinha ido buscar a uma boîte às 7h da manhã…

como reagiu ele?

pega no processo e vê que envolve pessoas do prp: ‘ eu devo ter aqui um amigo qualquer. tenho a impressão de que vou pedir escusa’, diz. viu tudo e, quando chegou ao fim, exclama: ‘ah, afinal, não tenho ninguém conhecido. vamos lá começar os interrogatórios’. [risos]

e como foram os interrogatórios?

os réus estavam com muito medo, mas cumpriram todos a regra de segurança interna da organização, de não prestar declarações. entretanto, o director nacional adjunto da pj, daniel sanches, veio avisar-me: ‘vocês vão ter segurança. estes indivíduos são perigosos e, das duas, uma: ou vocês permitem e é mais fácil para nós, ou não permitem e é mais difícil seguir-vos. mas vão tê-la’. autorizámos. depois, no desenvolvimento do processo, fomos apanhando documentos em que estavam escritas coisas como: ‘o martinho e a candidinha continuam a fazer das suas’; ‘não sou adepto da morte, mas espero que eles fiquem com uma deficiência física permanente.’ e nas celas da cadeia escreviam: ‘morte ao martinho’, ‘morte à cândida’.

como foi a vossa vida depois disso?

mudou completamente. até então, costumávamos sair muito, passear.

nunca teve medo?

tive. nessa noite, começo a ler a documentação e a fazer o cruzamento dos dados (tudo à mão, porque ainda não havia computador), e vejo que a organização era realmente muito perigosa. aí, tive medo, sobretudo pela minha filha e pela minha casa. não me deitei, fiquei a ler a documentação toda. fiz o cruzamento de milhares e milhares de papéis, analisei os pormenores dos atentados. era muito aleatória a intervenção deles: cada grupo fazia mais ou menos o que lhe vinha à cabeça, mas com a autorização tácita e por vezes concreta das hierarquias.

a segurança incluiu o seu marido e a sua filha.

sim, embora o meu marido refilasse muito. nós saíamos bastante e, a partir daí, passámos a ficar em casa. primeiro porque eu tinha de fazer o resumo de tudo o que ia chegando durante a investigação, até às tantas, todos os dias; depois, por não querer sair devido àquela visibilidade; e, terceiro, porque achava que em casa talvez estivesse mais protegida. a minha filha, com 9 anos teve logo segurança, que também a levava e trazia do colégio. por isso, não teve adolescência até aos 16 anos, não foi uma criança que brincasse livremente.

todos os dias fazia o resumo de quê?

dos documentos que iam surgindo: exames das armas, matrículas dos carros detectados (um deles, em nome do otelo). tinha de verificar ainda se nos documentos apreendidos a otelo havia frases coincidentes com as que eram referidas nas reuniões sob o nome da eca (estrutura civil armada), ou seja fp-25. na eca, falavam dos assaltos que tinham de executar, das mortes que tinham e iriam cometer, tendo eu constatado que essa reunião era a mesma que, em código, otelo e outros políticos da organização referenciavam nos célebres cadernos apreendidos nas buscas. depois, havia o espantoso documento 16, apreendido na fup [frente de unidade popular]?? e os vários elementos da parte política e do braço armado das fp25, que eram os documentos em que eles estabeleciam os graus de responsabilidade na violência a aplicar. os elementos operacionais da eca/fp-25 tinham a obrigação de fazer dois assaltos por mês, nomeadamente a bancos, para sustentar a organização. e, numa operação, se tivessem de atirar às pernas de alguém, era a direcção da eca que determinava; mas se fosse um tiro mortal, só com a autorização da direcção político-militar. e desta fazia parte otelo que, sobre aquele documento 16, escreveu pelo seu punho: ‘contento-me com o perfil do ‘in’ a abater’. e verificou-se que fup, eca e fp eram partes da mesma organização terrorista.

quando avançou para a prisão do otelo e dos outros?

com a documentação apreendida nas buscas, nomeadamente, os cadernos de otelo. antes, tínhamos visitado os cárceres do povo: tinham uma tampa coberta com cortiça, para abafar o som, umas escadinhas, e a pessoa que fosse deixada ali dentro nunca mais seria encontrada. um era no carregado, outro na margem sul, numa quinta, longe de tudo e de todos. também foi descoberto e apreendido um ficheiro com o nome de pessoas, nomeadamente empresários, a serem sequestradas.

a partir de certa altura, fica em exclusivo com esse processo.

sim, porque, havendo presos, tinha de os acusar em oito meses. estive 46 horas sem me deitar, a fazer a acusação. com 75 arguidos e não sei quantas testemunhas, posso dizer que andei praticamente oito ou nove meses sem dormir.

não tinha funcionários?

não. escrevi a acusação preparatória (à época, chamava-se requerimento de abertura da instrução contraditória) à mão, porque era mais rápido. depois, achei que a acusação deveria ser mais cuidada – dactilografada, portanto. mas aí tive a ajuda do meu marido e do seu secretário da inspecção do ministério público: eu escrevia, confirmava os documentos, o meu marido lia (porque ninguém lia a minha letra a não ser ele) e o secretário batia à máquina.

foram todos condenados, até ao supremo tribunal de justiça (otelo a 17 anos de prisão). qual foi a sua reacção quando ouviu que mário soares tinha proposto uma amnistia?

sempre procurei separar o trabalho que faço das decisões políticas. se foi entendido que assim se estabeleceria a paz – porque os arguidos terão assinado um compromisso de honra, no sentido de nunca mais voltarem à luta armada –, eu, embora pessoalmente desiludida, como magistrada entendi e aceitei. eu, no meu cantinho, com os agentes da pj, os juízes e restantes colegas, penso que recuperámos um pouco da paz e talvez mesmo da democracia. porque, se não tivéssemos actuado naquela altura, entrar-se-ia numa espiral de violência. e há outra coisa que foi muito positiva para mim, ter conhecido os chamados ‘arrependidos’.

manteve uma relação com eles?

sim. quando vou ao porto, tenho sempre a visita de um deles, que mora lá. nos primeiros tempos, mandavam-me cartões de boas festas. o macedo correia, que era o operacional, enviou-me ainda um livro de poesia. verifiquei que a vida não é a preto e branco. aquela gente acreditou que efectivamente o projecto global/fp-25 era o caminho a seguir na política e, se o otelo lá estava, é porque era bom e credível. portanto, não há pessoas totalmente más nem totalmente boas – e isto foi também uma lição de vida.

alguma vez encontrou o otelo? cumprimentaram-se?

não, nunca.

e se isso acontecesse?

não o conheço… naturalmente agora, que está tudo pacificado, passaríamos bem. mas foi muito simpático quando o interrogámos. eu e o martinho fomos à prisão onde ele se encontrava detido e foi uma pessoa muito afável.

e como foi esse interrogatório?

ele foi falando e explicando tudo. identificou aquilo que já sabíamos e o que desconhecíamos, como as iniciais dos nomes dos dirigentes. mas sempre se separou das fp-25, dizendo que nunca teve qualquer relação com elas, os seus elementos é que se tinham infiltrado no seu projecto global – que foi a única coisa que assumiu como sendo seu: um projecto para o futuro, onde também se enquadrava a eca. perguntámos-lhe por que é que a eca era armada e ele respondeu que seria para uma intervenção oportuna. aliás, quando o processo já estava em julgamento, eu e os meus colegas do mp, enquanto acalentávamos a esperança de que os arguidos não quisessem prestar declarações, quando chegava a vez dele dizíamos uns para os outros: ‘oxalá fale’. porque o otelo, ao fim de cinco minutos, passava a ser a nossa melhor testemunha de acusação. por exemplo, a propósito dos ‘engarrafamentos’, que na linguagem das fp significava raptos e sequestros, com a colocação das vítimas nos cárceres de que já falámos: o otelo disse que o seu projecto global nunca utilizou esse termo. confrontado pelo juiz adelino salvado com o documento do projecto global, numa parte em que referia ser altura de iniciar os ‘engarrafamentos’, respondeu: ‘pensei que se tratava de um investimento na água do luso…’.

recuando agora no tempo: foi para moçambique aos 16 anos. o que mais a chocou na realidade colonialista?

tudo o que dizia respeito à população. toda a administração e toda a classe média-alta, à excepção de uma ou outra família, eram brancas. não havia nada que proibisse os negros de entrar em restaurantes, em casas de banho públicas, etc., mas as coisas não aconteciam assim. havia uma influência muito forte da áfrica do sul e do apartheid. recordo um episódio que me chocou e emocionou: um dia, estava no jardim, uma senhora preta sentou-se ao pé de mim e começou a chorar. explicou-me então que era da áfrica do sul e como estava satisfeita por poder estar sentada no mesmo banco que eu. dos meus colegas de liceu, entre 40 alunos, apenas dois eram de cor – um dos quais a graça machel, que mais tarde encontrei na universidade de coimbra. sentava-se à minha frente, era muito bonita, inteligente, mas tímida. só a vi no 1.º ano, depois desapareceu.

a vida em lourenço marques era muito diferente desta província que era portugal?

sim, fazíamos grupo naturalmente, tínhamos o pôr-do-sol, os lanches, os jantares, os acampamentos… era uma vida completamente solta e muito mais atractiva, podíamos falar com os rapazes à vontade, sem que isso lançasse logo suspeições ao nosso comportamento.

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por que foi para direito? à época, não era um curso para raparigas.

esse desejo nasceu dos policiais que devorava, sobretudo da agatha christie, onde o criminoso era sempre descoberto, e do perry mason, onde se fazia sempre justiça. entretanto, convivi muito com o tio do meu primeiro marido – com quem vivemos, aliás, nos primeiros anos de casados – e que era o juiz- desembargador luís brites ribas. ele lia-me processos, alguns onde almeida santos era advogado, e as alegações fantásticas que fazia. mas fui para direito mais por uma questão emocional: estava naquela fase da juventude em que ainda pensamos que podemos mudar o mundo.

tinha alguma consciência política?

nenhuma. na minha família, ninguém era pró ou contra o regime. o meu pai trabalhava todos os dias, de manhã à noite, e a minha mãe tomava conta da casa – era, portanto, uma família normalíssima, da classe média-baixa. só quando vim para coimbra, em 1967, o ano que precedeu a greve dos estudantes, é que comecei a despertar. já tinha havido o maio de 68 em frança e comecei a ler alguns livros, a contactar com colegas, sobretudo os que estavam nas repúblicas. e aí, sim, fui construindo as minhas ideias e passei a condenar politicamente aquilo que antes apenas condenava emocionalmente.

o seu primeiro marido, joão ribas, foi o seu primeiro namorado?

não, tinha 18 anos quando o conheci e claro que já tinha namoriscado antes. mas foi o meu primeiro namorado a sério. terminámos o 7.º ano e fomos juntos para coimbra. mas só lá estivemos um ano. primeiro, por problemas económicos dos meus pais, que tinham também o meu irmão, com menos 12 anos do que eu. por outro lado, o meu namorado, com o encantamento das repúblicas, não passou no 1.º ano e ia ser chamado para a tropa. em vez de correr o risco de ir para angola ou guiné, onde havia guerra, era melhor voltar a moçambique e fazer lá a tropa.

mas não havia direito nas colónias.

não, mas podíamos fazer os testes. iam para a faculdade de lourenço marques, lacrados, depois eram enviados para portugal, onde eram vistos, e, se conseguíssemos a soma de 17 valores nas duas frequências, então poderíamos ir a coimbra fazer exame final, em setembro. e assim fiz o curso, a estudar e a trabalhar, em cinco anos. o meu primeiro emprego foi na universidade de lourenço marques, nos serviços da reitoria.

e quando casou?

cedo, com 21 anos, um pouco também para fugir à família que era muito conservadora. o meu marido foi fazer a tropa em porto amélia, e eu fui lá ter. fiquei a trabalhar no bnu. trabalhei muito. nunca fui à casa de banho do banco, não tinha tempo. se me perguntarem como era o banco, só me lembro do sítio onde estava sentada: as minhas duas secretárias e a minha cadeira giratória. fazia o confronto das minhas contas com as do caixa, pagava aos funcionários públicos (que recebiam através do bnu) e também tratava das contas de crédito às empresas.

com esse vaivém entre moçambique e portugal, apanha o maio de 68. passou por essa onda?

muito calmamente. em termos políticos, lia de tudo porque eu não sabia nada. a minha ânsia era a de ter conhecimento, de saber o que se passava e o que eu tinha perdido naqueles anos de vida… uma vida boa, não me estou a queixar: tive uma vida fácil e alegre.

tinha noção de que a magistratura lhe estava vedada?

não. e é engraçado que, sendo o tio do meu marido juiz, ele nunca me falou nisso. quando acabei o 5.º ano, já tinha intenção de ficar em lisboa e ir inscrever-me na magistratura, porque o meu marido também vinha acabar o curso.

nunca pensou em ser advogada?

não, porque aí tinha de atender aos interesses das partes e o que eu queria mesmo era endireitar o mundo. acho que cada um tem de fazer o seu bocadinho. se seguirmos um caminho que achamos justo e correcto, há sempre alguém que reconhece que temos razão e que vai fazer a mesma coisa, e por aí fora… penso, aliás, que a justiça está muito melhor, apesar dos problemas que temos. o nosso país mudou muito, sobretudo nos direitos das mulheres, e às vezes esquecemo-nos disso. em 1973, não podia ser magistrada, pelo simples facto de ser mulher. e não era só nessa área: ainda quis ir para inspectora das actividades económicas (a asae de agora) e também não pude, por ser mulher.

e como descobriu essa proibição?

fui fazer o requerimento para entregar na pgr e dizem-me: ‘ah, não vale a pena porque as senhoras não podem ser magistradas’. fiquei tão estupefacta que pedi uma audiência ao pgr, o conselheiro furtado dos santos – que me recebeu. disse-me que eu tinha razão, mas que brevemente as coisas tinham de mudar, até porque havia muitas vagas no ministério público (mp) porque os jovens estavam a ser todos chamados para áfrica. fiquei muito desiludida. fui procurar o professor vítor crespo, que conhecia da universidade de moçambique e que na altura era presidente do instituto de alta cultura. aceitou-me como técnica jurista.

até que chega a revolução.

mal é revogada a lei que proibia o acesso das mulheres à magistratura, faço o requerimento e sou colocada como delegada do procurador da república, interina, em grândola. fui a primeira mulher a tomar posse na magistratura. na altura, os meus colegas admiraram-se muito porque eu ia ganhar menos e ia sair de lisboa. eu dizia-lhes: ‘mas isto é o que eu gosto’.

o seu marido foi consigo?

sim, mas ele estava a acabar o curso, em lisboa. entrou depois como jurista para a inspecção das actividades económicas. estive em grândola entre 1974 e 1976.

que tipo de crimes havia?

havia muitos acidentes de viação mortais, na recta entre grândola e alcácer do sal. depois, havia muitas investigações de paternidade. no alentejo daquela época, havia muitas jovens e mulheres com filhos dos patrões, dos grandes agrários, que não tinham nome do pai. outros tinham, mas não recebiam nada. e as pessoas não acreditavam que eu estava ali e podia resolver isso sem terem de me pagar nada! a prova era fácil: não havia exames de adn, mas havia testemunhas que afiançavam que a mulher era empregada, que não tinha sido vista com mais ninguém, etc.. depois, como eu arranjo sempre problemas, acabei por ter um conflito com o então director interino e alguns guardas da prisão de pinheiro da cruz. aí, esse foi o processo mais difícil de investigar. era uma prisão de alta segurança, com criminosos de grande perigosidade, mas a forma como os guardas os tratavam era desumana e degradante. eu desconhecia isso, mas como recebia muitas cartas precatórias de outros tribunais, pedindo para inquirir os presos, ia à cadeia ouvi-los. um dia, estava à espera de um preso que nunca mais vinha. quando chegou, tinha a cara deitada abaixo e as mãos muito inchadas e contou-me que, como estava todo espancado, os guardas não sabiam se o apresentavam assim ou não. inquiri os outros e todos confirmaram que levavam grandes sovas, à noite. instaurei um processo contra todos os guardas. obviamente que, a partir daí, fiquei sem carro e passaram a deixar-me os presos no tribunal, sozinhos.

sem ninguém para os guardar?

claro. sentiram-se ofendidos com o processo e era uma forma de me provocarem. o tribunal ficava num primeiro andar muito baixo, bastava os presos pularem a janela para fugirem. eu, claro, tinha medo. tinha uma daquelas mocas de rio maior, que na altura eram consideradas armas proibidas, e então, de cada vez que um preso se mexia, inclinava-me para o bastão. [risos] felizmente nunca tive quaisquer problemas de seguranças. mais tarde, esses guardas foram acusados, julgados e condenados a penas simbólicas – mas foram condenados.

em grândola, quem eram os juízes?

um foi pinto monteiro e depois o antónio rodrigues maximiano, com quem casei em 1981, em segundo casamento.

foi o pgr quem vos apresentou?

sim, embora já nos tivéssemos encontrado nas reuniões para a criação do sindicato do mp. o antónio era de uma inteligência muito rápida e muito activo. nesse grupo de fundadores do sindicato, de quem tenho muitas saudades, aliás, estavam grandes cabeças que me orientaram na minha vida profissional: o maximiano, o mário torres (ex-juiz do tribunal constitucional), o artur maurício (ex-presidente do tc, já falecido)…

a sua filha já tinha nascido?

a minha filha nasceu em lisboa, em março de 1975, mas de imediato voltámos para grândola.

depois de grândola, esteve em cascais e no tribunal do trabalho. já no tic de lisboa, e além das fp-25, que outros processos teve?

ainda tive a dona branca [que angariava depositantes, prometendo pagar-lhes juros de 10% ao mês]. eram milhares de depositantes: 1.600 queixosos para descrever.

interrogou-a?

sim, eu e a juíza, margarida blasco. era uma senhora já de idade, mas muito dinâmica, e mandava mesmo. nós perguntámos-lhe: ‘d. branca, quer contar como é? se calhar, os seus afilhados enganaram-na’. e ela: ‘não! quem manda sou eu!’. assumiu a direcção do negócio em exclusivo.

mas achava que não era crime.

ela não saberia o que os outros colaboradores tinham retirado para si. mas tinha de ter consciência de que era crime porque ela pegava aos molhos no dinheiro que lhe davam, sem qualquer recibo, mesmo quando a situação já estava descontrolada, e ainda dizia aos clientes: ‘sim, é muito bom, dê cá o dinheiro’. e metia-o em baldes, em sacos plásticos e em alguidares. quando ela já estava presa, no tic, apanhámo-la a discutir o negócio na casa de banho. as guardas que a acompanhavam não estavam à espera que a senhora violasse as regras, mas quando entrei na casa de banho para lavar as mãos, lá estava ela com umas ‘sobrinhas’.

depois, como foi a sua vida?

após o julgamento das fp-25, que acabou em maio de 1987, fui promovida e colocada junto do tribunal da relação de lisboa. portanto, fui coordenadora desse processo desde o princípio até ao fim, penso que no ano de 2000.

depois, foi directora-adjunta do centro de estudos judiciários e vogal do conselho consultivo da pgr, até que o pgr souto moura a convidou para o dciap (departamento central de investigação e acção penal). dá ideia que, no seu caminho, faz sempre o que quer. é mesmo assim?

sim. mesmo que tenha de parar e reflectir porque não consigo naquele momento o que me proponho, depois retomo a minha luta.

na sua vida privada, também?

sim. a minha filha diz que sou muito teimosa e que tenho a mania de mandar. só não consegui impedir a partida do meu marido, isso deixou-me completamente desorientada. foi a minha primeira derrota.

essa perda aconteceu numa fase em que tinha no dciap processos complexos, nomeadamente o furacão. como lidou com isso?

foi muito complicado. primeiro, porque sou uma pessoa a quem é muito difícil viver sem afectos e eu tinha uma grande ligação, de amor e de cumplicidade, com o meu marido. além disso, admirava-o muito porque o considerava uma pessoa brilhante e única. foi um mês muito complicado, em que o vi partir e mais cinco amigos.

entre eles, o seu primeiro marido, com quem se dava muito bem. esse ‘driblar’ que a vida faz, mudou-a em alguma coisa?

sim, porque eu era uma pessoa muito alegre e acho que fiquei uma pessoa triste. é a única coisa que realmente não consigo ultrapassar: a saudade dos amigos e, em especial, do meu marido. e por isso continuei no dciap: porque ali estava e continua a estar a minha segunda família e a profissão de que muito gosto.

chegou a pensar sair?

sim. a minha ideia antes, com o meu marido já reformado, era fazer o mesmo para podermos passear. nós adorávamos viajar. quando nos metíamos no avião e íamos para os sítios mais recônditos, sem segurança atrás, era uma sensação de liberdade muito grande. isso tudo mudou. dediquei-me mais ao trabalho, ainda fui chamada para juíza-conselheira do supremo, mas recusei. senti que realmente pertenço ao mp, a minha vida é aqui.

é a magistrada do mp mais antiga do país, no activo?

sim, porque o meu colega e amigo pinto nogueira reformou-se.

como comenta o facto de o conselho superior do mp ter vetado a continuação dele como procurador distrital do porto?

acho que, sendo o mais antigo, merecia um tratamento diferente. tinha sido proposto de novo pela pgr, estava convencido que ficava. no momento da votação saiu da sala e, quando regressou, sem que ninguém o tivesse avisado, foi-lhe dito que a sua comissão não fora renovada… é um choque muito grande.

percebe-se que é uma pessoa de afectos. ficou particularmente magoada com pinto monteiro quando ele lhe abriu processos disciplinares por causa do processo dos submarinos e do freeport? processos depois arquivados pelo conselho do mp.

desde o início da minha carreira que o conheço, foi uma pessoa que sempre se preocupou com a minha família. neste momento, em que está prestes a sair da pgr, não gostava de falar sobre isso.

ainda tem falta de meios no dciap?

nós nunca temos meios suficientes. mas temos de trabalhar com aquilo que temos e o melhor possível. neste momento, caminha-se para a satisfação das necessidades que sempre venho ‘reclamando’.

a inspecção tributária (it), por exemplo, está na origem de processos como o furacão e o monte branco. tem elementos suficientes da it?

não, mas a equipa é fantástica, desdobram-se e fazem um trabalho que quase parece a multiplicação dos pães.

porque é que o dciap tem preferido recorrer à it, em vez da pj?

a it tem de estar sempre presente nos crimes tributários porque são os especialistas na matéria, de contrário iríamos para uma busca sem saber que documentos procurar e trazer, bem como levar a cabo uma investigação altamente especializada sem norte e sem estratégia.

e porque é que a pj não tem participado nas grandes operações do dciap?

no furacão, a direcção da dciccef (departamento de combate à corrupção da pj), à data, disse que não estava em condições de assumir a investigação porque o processo tinha nascido com a it e eles não queriam a it. e não estavam preparados para apresentar propostas de diligências. por outro lado, disseram que tinham pouco tempo para se prepararem para as buscas. isto consta do processo. sendo que, se não fizéssemos naquela altura as buscas, iríamos perder parte substancial da prova. o processo dos submarinos esteve, no início, na pj, mas parado cinco meses: acabámos por avocá-lo e proceder à investigação pelos nossos próprios meios…

porque demoram tanto os processos no dciap?

demoram tanto tempo quanto nos outros sítios, mas agravada a situação por serem mais complexos e difíceis. primeiro, os processos não estão só no dciap: a polícia procede, fundamentalmente, às investigações e ela própria pede mais prazo para terminar porque tem limitações de meios humanos e muitos processos. por outro lado, os processos no dciap é que são mais mediáticos, pela natureza e características dos crimes que lhe compete investigar. depois, em quase todos os processos são precisas as tais perícias que demoram, em média, um a dois anos. e ainda temos as cartas rogatórias que remetemos para todo o mundo e cuja devolução demora anos.

o mp de munique, que condenou administradores da ferrostaal por terem pago ‘luvas’ a portugueses no negócio dos submarinos, já vos enviou estes dados?

aguardamos há três anos que cumpram a rogatória, em que lhes pedíamos isso. vamos comparar: resolvemos o furacão (crimes de fraude fiscal) exactamente da mesma maneira que munique fez nesse caso: sem julgamento e com penas de multa. só que na alemanha pode optar-se por tal decisão nos crimes de corrupção passiva e foi por isso que o processo foi muito rápido. nós também já fizemos isso na operação furacão e em centenas de processos! foram aplicadas injunções (isto é, em linguagem comum, ‘penas pecuniárias’) e proibições de determinadas actuações. já recuperámos para o estado mais de 150 milhões! mas aqui ninguém se lembra disso…

isso pode acontecer também aos arguidos do monte branco?

se o crime apurado for só a fraude fiscal, é o mesmo sistema. se houver burla ou outros crimes puníveis com mais de cinco anos de prisão, não.

no freeport, porque não chamaram josé sócrates a prestar declarações, quando se soube do envolvimento do tio e do primo?

a lei exige fundadas suspeitas para se constituir alguém como arguido.

não disse como arguido, mas ouvi-lo em declarações.

como testemunha de quê? a testemunha é um auxiliar do mp, para fornecer elementos que ajudem a investigação e a decisão final a tomar. vamos incomodar um ministro, um deputado ou um qualquer cidadão, anónimo ou figura pública para lhe perguntar ‘olhe, diz-se que…’? . o ‘diz-que-diz’ não chega para se chamar alguém – aliás, a lei proíbe o testemunho indirecto, que não pode sustentar a decisão de acusar. sendo assim, para quê e porquê ouvir alguém sobre o ‘dizem que…’. pelo contrário, haverá que recolher-se no processo indícios do crime para inquirir. por isso é que foi preciso esperar pelas perícias, para saber se tinha havido algum movimento suspeito de contas bancárias. se houvesse, josé sócrates seria ouvido como arguido; se não houvesse, mas fosse imprescindível aclarar qualquer situação menos perceptível, seria ouvido como testemunha. só que havia já mais de seis anos que o processo se arrastava e, por outro lado, tínhamos que cumprir o prazo que havíamos solicitado à pgr para concluir as investigações, prazo que acabava em fins de julho. e tomámos a decisão: não vamos prolongar um inquérito para a conclusão ser a mesma, ou seja, a dedução da acusação que acabou por ser feita.

mas no fim até tinham perguntas para lhe fazer, que estão no processo.

a pj de setúbal, que trabalhava connosco no dciap, também se atrasou no relatório final. eu e os magistrados titulares do processo ponderámos então a situação: justifica-se pedir mais prazo, o que significa que, em vez de 27 de julho vamos passar para outubro a conclusão do inquérito? mostra-se imprescindível e esclarecedora a inquirição do primeiro-ministro? não se justificava. muito claramente, perguntei aos magistrados se tinham indícios para acusar o primeiro-ministro – e, nesse caso, o processo demoraria o tempo necessário, mesmo pedindo prorrogação do prazo concedido pela pgr. e eles responderam que não. então, não se justificava desencadear a tramitação para obter autorização do conselho de estado para inquirir como testemunha o primeiro-ministro. mas as questões a colocar-lhe tinham de ficar no processo, para total transparência. e isto porque no processo constava apenas o ofício a informar das perguntas a colocar, as quais, porém, não tinham sido anexadas aos autos, por mero lapso e por pressão do tempo .

acha injustas as críticas de certas pessoas, quando dizem que o pgr protegeu josé sócrates?

não protegeu ninguém porque não teve nenhuma intervenção no processo. nem eu protegi, nem os dois magistrados titulares. de fora, é fácil falar porque não se tem a pressão de 50% a dizer que estamos a perseguir e 50% a dizer que estamos a proteger… não foi. foi um trabalho de investigação e de decisão meramente técnico-jurídica, com liberdade, consciência jurídica e total transparência e lealdade processual.

há pouco tempo, surgiram críticas em jornais angolanos de que a justiça portuguesa, sobretudo o dciap, está a perseguir certos empresários angolanos. como comenta?

só por ironia! … se um banco nos comunica que houve uma operação financeira suspeita, temos de seguir o rasto do dinheiro – que pode ser russo, angolano, português, chinês… mas somos obrigados a investigar.

nestes anos todos à frente do dciap, houve alguma mudança de atitude do governo em relação ao dciap? lembro-me que chegou a dizer que às vezes parecia uma pedinte, a pedir meios.

quando digo isso não estou a evocar nenhum governo em especial, estou a queixar-me do que a lei não prevê e que ninguém tem iniciativa de decidir: que o dciap, para fazer o seu serviço, tem de ter x funcionários, x magistrados, x peritos. a ministra da justiça, após a tomada de posse, tomou a iniciativa de me perguntar: ‘estamos em crise, mas , mas de que é que precisa para as investigações?’. por iniciativa dela, sublinho, porque eu acho que não têm de ser os políticos a resolver estes problemas, são os serviços respectivos. disse-lhe que precisava de traduções urgentes, de peritos, etc. a ministra solicitou à pj um tradutor a tempo inteiro, que já temos, e intermediou protocolos com o banco de portugal e a cmvm.

tem uma boa relação com paula teixeira da cruz?

tenho uma óptima relação institucional. primeiro, porque tenho muito respeito e admiração por ela: acho que é uma mulher muito sofrida e muito forte e, portanto, mexe também com a minha maneira de ser e com os meus afectos. e depois porque assumiu uma atitude e decisão sobre os meios do dciap.

diga-nos uma coisa: ama o ministério público?

alguém criticou muito a ministra por ela ter dito isso, que o próximo pgr tem de ser uma pessoa que ame o mp. mas eu acho, de facto, que é preciso amar o mp. porque não há nenhuma democracia que resista sem um mp forte, coeso, sabedor e autónomo do poder político. tenho orgulho no meu estatuto, tenho orgulho em ser do mp.

então, tem o perfil que a ministra desenhou.

estou onde quero e cheguei onde quis. para ser pgr é preciso atributos que não sei se tenho. gosto do mp, penso que tenho dado o meu melhor.

paula.azevedo@sol.ptfelicia.cabrita@sol.pt