França. Revolta contra a violência policial pode reeditar motins de 2005

Depois da violação de um jovem numa esquadra da região de Paris, milhares de pessoas envolveram-se em confrontos com as autoridades este fim de semana

Mais de dez dias depois de o jovem Théo ter sido violado com um cassetete numa esquadra de polícia, numa agressão que terá envolvido três agentes, milhares de pessoas manifestaram-se contra a violência policial na região de Paris. Os protestos degeneraram em confrontos entre jovens e forças da ordem. Muitas viaturas foram incendiadas, num cenário que faz a comunicação social temer a repetição dos motins de 2005. Uma manifestação em Seine-Saint-Denis, onde vive o jovem, resultou na prisão de 37 pessoas. Domingo, em Argenteuil, mais 11 pessoas foram detidas pela polícia.

O jovem Théo foi detido no dia 2 de fevereiro. Foi posteriormente hospitalizado, tendo sido comprovado pelos médicos que foi agredido e violado com um cassetete. Foi aberto um processo aos três polícias que o detiveram. Uma informação interna da polícia garante que “a violação terá sido um acidente”. A vítima foi operada, tendo sido visitada pelo presidente francês, François Hollande. O jovem fez repetidos apelos à calma, mas os incidentes e a repressão sucederam-se: dezenas de carros foram incendiados e mais de 100 jovens foram detidos pela polícia, alguns condenados em juízos sumários a meio ano de prisão.

No sábado, a prefeitura da polícia informou que um agente tinha salvo uma criança de cinco anos de um carro em chamas. No mesmo dia veio a saber-se que o heroico salvamento policial tinha sido mentira e que quem tinha salvo a criança tinha sido um manifestante de 16 anos. “Fui eu que salvei a criança, não sou nenhum herói. Só quero restabelecer a verdade”, declarou o jovem a um site de informação local.

O defensor dos direitos humanos Jacques Toubon declarou-se, segundo relata o “El País”, muito preocupado com a evolução dos acontecimentos e revelou que, segundo um estudo recente, dos 5 mil jovens mandados parar e identificados pela polícia, 80% eram negros e árabes. A polícia só tentou identificar 16% de jovens brancos e católicos.

Na sequência destes protestos violentos, o ministro do Interior, Bruno Le Roux, apelou à calma e condenou “todas as formas de violência”.

Por sua vez, a candidata presidencial de extrema-direita Marine Le Pen apelou para que fossem dados mais meios à polícia para reprimir “os desordeiros”. “Tudo isto é consequência do laxismo que se instalou na sociedade francesa, que é da responsabilidade dos políticos que nos governaram durante anos”, defendeu.

Recorde-se que em 2005, dois jovens, Zyed e Bouna, morreram eletrocutados durante uma perseguição policial. Durante as três semanas de protestos e confrontos que se seguiram, mais de 300 edifícios foram danificados, 10 mil carros incendiados e 140 polícias feridos. Em julho de 2016, o jovem Adama Traoré, de 24 anos, morreu depois de ter sido interrogado numa esquadra. Nas manifestações do passado fim de semana havia um cartaz em que se podia ler: “Théo e Adama recordam-nos a razão por que Zyed e Bouna fugiam.”

Em 2005, o filósofo francês Alain Badiou escreveu um texto chamado “A humilhação de todos os dias” sobre a vida do seu filho adotivo e sobre o que significa ser negro ou ter ar de estrangeiro em França. Onze anos depois, as coisas estão na mesma. Meditemos sobre o texto.

“Tenho um filho adotivo de 16 anos que é negro. Chamemo-lo Gérard. Ele não está incluído nas ‘explicações’ sociológicas e miserabilistas habituais. A sua história passa-se simplesmente em Paris. Não consigo contar as vezes que foi controlado na rua. Inumeráveis, não há outra palavra. As detenções: seis! Em 18 meses… Eu chamo ‘detenções’ quando o levam algemado à esquadra de polícia, quando o insultam, quando o amarram a um banco, quando fica assim durante horas, algumas vezes detido um ou dois dias. Para nada.” Badiou acrescenta como o pior da perseguição são os pormenores e como fora a última vez que tinham detido o filho sob uma falsa acusação. Simplesmente porque o amigo era francês de origem árabe, e ele negro.

E todos tinham a cor que normalmente têm os pobres. Nessa ocasião, os polícias anunciaram-lhes devidamente o que lhes iam fazer: “Dois dos ocupantes lançam-se sobre Gérard e Kemal, atiram-nos ao chão, algemam-nos com as mãos atrás das costas, depois empurram-nos contra uma parede. Insultam-nos e ameaçam-nos: ‘Paneleiros de merda! Idiotas!’ Os nossos dois heróis perguntam-lhes o que fizeram. ‘Vocês sabem muito bem! Virem-se imediatamente (colocam-nos, sempre algemados, de frente para as pessoas que passam na rua) para que toda a gente possa ver quem vocês são e o que fizeram!’ Reinvenção do pelourinho medieval (uma meia hora de exposição), mas, novidade, antes de qualquer julgamento, e mesmo de toda a acusação. ‘Vão ver o que é levar na tromba quando estiverem sós.’ ‘Gostam de cães?’ ‘Na esquadra não haverá ninguém para vos ajudar.’”

Como escrevia Badiou na sua carta: “Um Estado para o qual aquilo a que se chama ordem pública não é mais do que a junção da proteção da riqueza privada e dos cães lançados sobre as origens operárias ou sobre os provenientes do estrangeiro é pura e simplesmente desprezível.”