Tiago Saraiva. “Devolver o Palácio Marquês de Abrantes à população”

Neste sábado concluem-se dois anos de trabalho com as populações de Marvila para discutir e perceber o que pode ser um dos edifícios mais emblemáticos da zona: o Palácio Marquês de Abrantes

Durante dois anos decorreu, no Palácio Marquês de Abrantes, um trabalho que desembocou numa exposição. Esse esforço tinha o duplo objetivo de mostrar, pela mão de quatro artistas, as experiências e histórias da zona oriental de Lisboa e das suas populações operárias, e ao mesmo tempo, promover um processo de discussão com a população sobre o destino daquele edifício. A par da exposição, e na sequência do trabalho na Rua de Marvila e com os seus moradores, o ateliermob deslocou uma equipa para o palácio para projetar, com os habitantes, uma ideia para o futuro do edifício. No sábado, esta primeira fase do processo encerra-se. Sobre o assunto falámos com o arquiteto Tiago Mota Saraiva, do ateliermob, que conta com uma importante experiência na criação de uma arquitetura democrática e articulada com as populações.

No documento da exposição que decorre até sábado no Palácio Marquês de Abrantes, vocês defendem que a solução a ser encontrada com a população é contra a gentrificação que está a decorrer na zona, mas é possível inverter este processo?

No início, nós pensávamos que sim. Há um processo em curso, inicialmente ligado aos planos que havia para Marvila que falavam em três grandes eixos: o grande hospital de Lisboa, a terceira travessia do Tejo e as maiores áreas de construção para a classe média – todos previstos para Marvila. O nosso primeiro interesse em trabalhar aqui foi perceber como é que isso estava a acontecer num cenário em que, de repente, se entrou em crise e tudo parou. O que encontrámos naquele pedaço de Lisboa foi uma cidade expectante, com as pessoas à espera do que ia acontecer. Nesse sentido começou-se a tentar reunir as pessoas, a pedir opinião. Havia uma grande descrença em tudo o que se propunha, as pessoas nem acreditavam que durante este processo íamos mudar uma parte do ateliê para lá. Neste momento, o grande foco de tensão é que nos vamos embora.

As pessoas não querem que se vão? 

Nós temos o compromisso de ter lá o ateliê até ao fim da exposição [acaba este sábado] e fazer um projeto daquele edifício, com as pessoas, que contrarie a desertificação, que traga gente nova para o bairro porque, neste momento, já há muito pouca gente a habitar ali. E que contrarie a lógica da ruína.

No fundo, não é essa lógica que precede a gentrificação? Os bairros arruínam-se, expulsam os seus habitantes e são tomados pela especulação?

Exatamente. No fundo, diminui-se o valor do edificado, começa-se a comprar em massa coisas que estão já em ruína, faz–se tábua rasa de um património e de uma história e constrói-se edifícios novos. Nós queremos contrariar isso: queremos dar-lhe conteúdo e dá-lo às pessoas. Nós queremos, mais do que reabilitar o edifício, ajudar a reabitar a zona.

Isso não é um pouco contraditório com a proposta de aí nascer uma espécie de centro de refugiados? Normalmente, os centros não são abertos aos bairros e às pessoas que lá habitam. Ou é um centro que também é um equipamento social que beneficie a população local?

A conclusão a que chegámos com as pessoas é uma lógica de centro de acolhimento. Há muita gente naquela zona a viver sem condições, sem casas de banho, etc., e que normalmente tentam rejeitar a existência de obras, como inquilinos, porque isso surge como o primeiro passo para serem forçados a ir embora. Este edifício podia servir para acolhimento das pessoas enquanto fossem melhoradas as suas casas. É preciso dizer que houve sempre uma rejeição, por parte das pessoas, da lógica da habitação social. Existe muita habitação social naquela zona, acima da linha do comboio, e o próprio edifício não se adapta a esse modelo. Então achou-se muito mais que isso fosse um edifício de exceção com casas de exceção.

E não terá outras valências sociais, como salas de estudo para as crianças, etc.?

Sim, até há uma associação de moradores da zona que solicitou espaço para desenvolver as suas atividades e realizarem outras em torno do empreendedorismo social. Já há uma dinâmica. O nosso principal projeto é não só reabilitar o edifício, mas conseguir que haja uma entidade, com a população, que gira aquele espaço, ou quem o município entender. Agora, uma das coisas que nos parece interessante de “coser” com a questão dos refugiados é que naquela zona há muitos espaços de negócios, ainda equipados, que foram fechando de um momento para o outro. Aquilo é um sítio que potencialmente pode ganhar vida outra vez. Há coisas que foram fechadas e que rapidamente podem ser reativadas. E também construir novas dinâmicas de trabalho naquela rua. É interessante que possa haver novas populações que possam passar por ali e se possam ir sedimentando ali à volta. Aquela zona não é bem a Marvila ribeirinha, onde agora há um processo de surgimento de galerias artísticas. Mas também não é um processo de habitação social, como o Bairro dos Alfinetes. Ficou ali a meio, um bocadinho esquecida. No fundo, o que se queria era dinamizar e criar uma realidade nova naquela zona, devolver o palácio à população do bairro.

Há participação da população neste processo?

Foi de alguma forma a população que nos chamou para este edifício. Inicialmente, o que nos disseram é que queriam que a sede da junta de freguesia fosse ali. Aquilo é o grande palácio histórico da zona e a população gostava que fosse valorizado. Não sendo isso possível, defendeu que devia ter um uso público e servir as pessoas com a porta aberta. Houve um enorme entusiasmo quando reabrimos o palácio à visita das pessoas. Elas reconheceram as casas de quem lá tinha vivido, chegaram a viver 200 pessoas no palácio. E hoje, com o gabinete local, todos os dias entram pessoas para falar. Nós, a pedido das pessoas, às quintas-feiras projetamos vídeos e às sextas fazemos uma síntese do trabalho, com as pessoas, do que se fez na semana.

Não haverá uma pressão turística?

O edifício tem uma vista fantástica. Essa pressão, a ser feita, não é junto de nós mas do proprietário, a câmara municipal. Haverá certamente inúmeros interessados. Mas existe uma rejeição pela população da lógica do turismo. As pessoas querem muito mais uma lógica de que volte a ser teto para as pessoas e equipamento social. Nós chamamos-lhe uma casa entre linhas. Querem que se consiga agarrar gente ao território.

Como vai ser concluído o processo?

No próximo sábado serão apresentadas as conclusões, que foram sendo articuladas com as pessoas, para serem aprovadas e posteriormente levadas ao município. O que nós esperamos é que a câmara receba este projeto e lhe dê o seguimento que entender. O que decidir para ali é central para aquela zona da cidade. Existem já meios e estruturas interessadas, nacionais e europeias, em trabalhar no aproveitamento do edifício.