A vergonha do Homem Montanha

Dizia-se que tinha mais de dois metros e só isso era motivo para se falar dele. Isto é, Santa Camarão. José Soares Santa, nascido em Ovar no dia de Natal de 1902. O Camarão era alcunha de família. Família de pescadores, está claro!

É aqui que entra Anny Ondra. Talvez não conheçam muito bem Anny Ondra e eu também não conhecia até começar a saber da história da vida de Santa Camarão. Explico. Anny também nasceu em 1902, mas em maio. Em Tarnów, na que era a imperial Áustria-Hungria. Filha de um coronel, cedo se dedicou ao cinema. Foi atriz de comédia. Surgiu no primeiro filme sonoro de Alfred Hitchcock, Blackmail, e teve de ser dobrada porque o seu sotaque era excessivo. 

Em 1930 apareceu no filme famoso para a época: Liebe im Ring, no original. Nesse filme, as protagonistas eram Renate Müller, a filha do peixeiro, e a russa Olga Knipper, a fazer de Lillian, mas Anny estava lá, assistindo às filmagens do realizador Reinhold Schüntzel. Amor no Ringue: a vida do pugilista alemão Max Schmeling, campeão do mundo de pesos pesados entre 1930 e 1932. Chamaram-lhe O Boneco do Nazismo. Hitler e a propaganda de Goebbels chuparam até ao tutano os ossos da sua aura de ariano invencível. Sobretudo depois do KO que infligiu a um jovem negro americano chamado Joe Louis, em 1936. Durante a guerra foi piloto da Luftwaffe e paraquedista. Um exemplo.

Mas voltemos a 1930 e a Amor no Ringue. Arthur Duarte, ator, realizador, diretor de O Leão da Estrela e de A Menina da Rádio, também estava lá. Fazia um papel pequeno, secundário, de manager. Maximilliam Adolph Otto Siegfried Schmeling tomava conta do cenário e do ecrã. Ainda por cima com nome de príncipe wagneriano. O seu personagem era ele próprio, Max, filho do vendedor de frutas. Era aqui que eu queria chegar. Quem fazia igualmente de si mesmo era um português de pés gigantes: calçava, segundo a lenda, 49 e meio. Santa Camarão: o José Santa. 

Anny Ondra veio a casar-se com Max Schmeling depois de se separar do realizador Carl Lamac. Esteve com Max 54 anos e houve, muito mais tarde, um filme sobre a vida do pugilista, chamado muito prosaicamente Max Schmeling, que refletia a sua vida comum em jeito de biografia. 

Em 1920 não era propriamente fácil ter dois metros e tal de altura e usar sapatos que pareciam pequenos cacilheiros. Santa Camarão fugiu às populares exibições nas feiras, que exploravam fenómenos como ele, e dedicou-se primeiro à luta livre, que estava na moda, e depois ao boxe. Viajou por todo o lado, do Brasil aos Estados Unidos, demandou a Europa, passou algum tempo na Alemanha. O pai era fragateiro e ele veio cedo para Lisboa. Começaram por chamar-lhe Camarãozinho. Depois entrou nos ringues e passou a Gigante de Ovar.

Santa Camarão entrou em combates históricos. Como o do Madison Square Garden, em Nova Iorque, no dia 6 de Dezembro de 1932. Defrontou o campeão do mundo de pesos pesados, Primo Carnera, italiano quase tão alto como ele, e desistiu contrariado: «Subi ao ringue em condições anormais. Tinha um joelho violentamente contundido».

Também lhe chamaram Homem Montanha, em contraponto a Carnera, que era os Alpes Ambulantes. Valia tudo para vender o espetáculo. Casou-se com uma rapariga meio americana, Mary Loreto, mas a união não durou muito. Torna-se carismático e popular. Pelas ruas de Alfama corre, de boca em boca, uma quadra que lhe é dedicada: Santa Camarão/Foi do boxe campeão/Por ter uns pés delicados/Também a Ilda Fernandes/Por ter umas mamas grandes/Foi rainha dos mercados.

A relação entre ambos, Santa e Ilda, perde-se nos mexericos dos bairros pobres da capital. O Homem Montanha parecia grande demais para que o seu corpo aguentasse o desgaste das lutas e dos anos.

Em 1933, Santa ainda surge, envergonhadamente, num filme que conta a história de um boxeur alcoolizado e à beira da total corrupção física. The Prizefighter and the Lady, realizado por Van Dyke e Howard Hawks, contou com o inevitável Primo Carnera, com o fantástico Jack Dempsey (campeão do mundo de 1919 a 1926), e com Max Baer, outro dos enormes pesos pesados da história do boxe.

Continuou sempre em boa companhia, o Homem Montanha. Participou em mais de cem combates até que os médicos o mandaram parar. Os quilos tinham-lhe martirizado os tendões. Escreveu uma autobiografia: A Vida de José Santa Camarão Contada Por Ele Mesmo. Livrinho pequeno, com páginas de humildade. E poucas, muito poucas: «Gritavam – Ó Camarão! Ó Calmeirão! Ó Camarãosão! Comecei a ter vergonha de ser tão alto…».