Conhé, Kiki, Caló, Faustino e Barnabé

A equipa do União de Tomar recitava-se como um poema. Havia Pavão, Bolota e Camolas. Totói, o Mãozinha, vinha no fim…

Primeiro vou falar de o Divino Manco. Hector Castro. Era filho de galegos e nasceu no Uruguai, em 1904. Jogava nas calles de Montevidéu com os garotos da sua idade. Aos 13 anos trabalhava como ajudante de carpinteiro. Uma serra elétrica cortou-lhe o braço direito, logo abaixo do cotovelo.

Hector era um rapaz teimoso, obstinado. Queria ser jogador de futebol e foi-o. Aos 17 anos estava no Clube Atlético Lito. Montevidéu é uma cidade encantadora. E com uma particularidade única: todos os clubes uruguaios estão lá sedeados. O Nacional é um deles. Clube Nacional de Football, assim mesmo à inglesa. El Rey de Copas. O Divino Manco chegou cedo ao Gran Parque Central. Ficou.

Era estranho ver jogar Hector Castro. Faltava qualquer coisa aos seus movimentos rápidos, habilidosos, enleantes. Não era apenas o braço, era uma espécie de equilíbrio, uma dança disforme, um ritmo dissonante. Isso nunca o impediu de ser grande. 

Em Amesterdão, nos Jogos Olímpicos de 1928, Portugal esteve presente. Chegou aos quartos-de-final. E tinha Pepe. É fundamental, um destes dias, falar de Pepe. O Uruguai foi campeão. Tinha José Leandro Andrade, a Maravilha Negra, filho de escravos fugidos do Brasil, o homem que dançou com Josephine Baker. E tinha o mítico José Nasazzi, El Terrible, o defesa-central que levantou a Taça do Mundo. Isso foi dois anos depois, no primeiro campeonato, o de 1930, precisamente em Montevideu.

Hector Castro foi campeão olímpico, em 1928, e campeão do mundo, em 1930, no Estádio Centenário. Não pôde agarrar a Jules Rimet com as duas mãos porque a direita não estava lá. Mas foi para além dessa ausência até ao momento estático da grandeza: dia 18 de Julho, precisamente às 15 horas e 35 minutos. Congele-se a imagem. O golo. Congele-se outra imagem, ainda: dia 30 de Julho de 1930, minuto 89 da final entre Uruguai e Argentina. A Celeste Olímpica vence por 3-2. Essa equipa ficou para a história como um quadro de Ernesto Laroche, o pintor das carreteras. Ballestero; Mascheroni e Nasazzi; Andrade, Fernández e Gestido; Dorado, Scarone, Castro, Cea e Iriarte. Castro, o Divino Manco, faz o 4-2, de cabeça. O Uruguai esgota-se na festa impossível. Braços erguem-se para o céu. O direito de Castro só pela metade.

O meu bom amigo Bernardo Trindade, melhor alfarrabista de Lisboa, devolve-me muitas vezes à memória um jogador que se chamou António Eduardo Fortes. Claro que ninguém se lembra dele por este nome. Era o Totói. O Mãozinha. 

Veio de Cabo Verde com o irmão gémeo, o Djunga. Passou pelo Lusitano de Évora, pelo Farense. Em 1964 foi para Tomar, jogar no União. 

Quando era miúdo, gostava muito do União de Tomar. Não sei se por causa do equipamento, às riscas grossas, se por causa do nome. Certamente também por causa de Totói. O avançado que não tinha uma mão, a esquerda. Chamaram-lhe o Eusébio de Tomar antes de o verdadeiro Eusébio ter jogado no União. Mas podiam ter-lhe chamado Divino Manco. Ficar-lhe-ia bem.

Ao contrário de Hector Castro, Totói não perdeu a mão: nasceu sem ela. Ou melhor: com um arremedo de mão, atrofiado, inútil. Era avançado, volta e meia  fazia golos, perguntei-me sempre como marcaria os lançamentos laterais, talvez o dispensassem dessa tarefa. O defeito não lhe prejudicava nem o equilíbrio nem a funcionalidade. E o nome ressoava como o de um personagem de Machado de Assis, Brás Cubas ou assim.

União Futebol Comércio e Indústria de Tomar. Um clube que sempre teve nomes estranhos, melhores do que os machadianos, até, Quincas Borba, Iaiá Garcia  ou o diabo que os valha. Porque havia o Camolas e o Bolota. E o Bilreiro e o Dui. O Barrinha e o Ferreira Pinto. Como houve o Florival, o Lecas, o Pavão e o Leitão. Pelo meio, o Manuel José e o Raul Águas. E o Simões e o Eusébio, que não eram alcunhas, eram eles mesmos, ainda que por pouco tempo.

Totói era nome de avançado único. Mas depois dele ainda veio o N’Habola e a gente pensava que não poderia existir nada de foneticamente mais esquisito. Totói, o Mãozinha, que não tinha mão e corria em direção às balizas contrárias com a vontade inequívoca do golo.

Diziam que Castro era mau, com aquela gana uruguaia de transformar os campos de futebol em campos de batalha. Que golpeava os adversários com o coto, sem contemplações, no pescoço, na cabeça. Totói era tranquilo e delicado de morabeza, com a felicidade tranquila do Mindelo. Da rádio, em voz abafada, a gente ouvia: Pavão, Bolota, Camola e Totói. E achávamos que fazia sentido como um poema dedicado à mágica senhora das paixões: a bola. 

Porque esse União de Tomar também começava com um outro poema, talvez um soneto. E rimava assim: Conhé, Kiki, Caló, Faustino e Barnabé. Totói vinha no fim.

afonso.melo@newsplex.pt