James Baldwin. Um diabo americano em Paris

Deixando para trás a temática racial, em “Giovanni’s Room” Baldwin explorou as ideias de expatriação, masculinidade e identidade sexual. Este romance parcialmente autobiográfico é exemplar daquela “paixão genuína e historicamente relevante”, que Susan Sontag identificou em Baldwin

Em virtude do lançamento do livro póstumo de James Baldwin “I am not your negro” – reconstruído a partir das notas deixadas pelo autor para o inacabado livro “Remember This House” – e do documentário com o mesmo nome, recentemente têm vindo a multiplicar-se os textos sobre o autor, ainda que sempre por referência ao tema da raça – de facto, Baldwin é especialmente conhecido pelos ensaios e romances em que abordou a condição dos negros na América e no mundo. Porém, embora esse tenha sido o tema que provavelmente mais páginas da sua obra ocupou, não foi o único. 

A busca pela identidade pessoal e, mais especificamente, pela identidade sexual são outros dos temas abordados por Baldwin. É sobre estes temas, especialmente o segundo, que versa este texto, contextualizado pelo retorno de algum fanatismo religioso, que agressivamente procura recuperar o terreno perdido para o secularismo, assim como de uma homofobia amuada que se esconde num suposto movimento do politicamente incorrecto. O que acabo de dizer pode, pelo menos em parte, ser vislumbrado, a título ilustrativo, no reemergir do ódio patente nos “fenómenos” de Trump ou de Erdogan e, em geral, no ressurgir do populismo um pouco por todo o lado; ódio que tem vindo a espalhar-se como uma epidemia e que não se dirige apenas à raça, à cor e à identidade (argumento tríptico esgrimido por Toni Morrison para justificar a vitória de Trump), senão também à sexualidade.

A bibliografia de James Baldwin, escritor ignorado em Portugal, conta, entre tantos outros, com um pequeno e brilhante livro de 1956 chamado “Giovanni’s Room” – normalmente imputado à categoria da “literatura gay”, o que é no mínimo redutor -, no qual, com uma singular elegância, aquele explora, entre outras, as ideias de “expatriação”, “masculinidade” e “identidade sexual”. É um livro verdadeiro, cuja escrita deixa transparecer uma sensação de verdade, de naturalidade, de crueza tipicamente americana. Nos termos de Susan Sontag, é possível sentir em Baldwin a presença de uma paixão genuína e historicamente relevante, e é muito provavelmente na natureza dessa paixão que reside o poder e a longevidade da sua linguagem. 

Na sequência do primeiro romance “Go Tell It on the Mountain”, este livro, com o qual os editores de Baldwin não ficaram propriamente efusivos, por o associarem enquanto “escritor negro” a um certo público – tendo o autor acabado por passar da conhecida editora Alfred A. Knopf para a pequena Dial Press -, conta a história de um atormentado caso amoroso, cuja acção se passa em Paris, entre David, um americano branco que narra a história, e Giovanni, um moreno bartender italiano. A similitude da história com a vida de Baldwin, escritor nascido no Harlem em 1924, não é uma coincidência: em Novembro de 1948, com vinte e quatro anos, como muitos outros aspirantes a escritores e artistas americanos (muitos deles afro-americanos, como Sidney Bechet, Josephine Baker, ou Richard Wright), mudou-se para Paris, em busca de um sítio racial e sexualmente menos opressivo que a América, onde conheceu e se apaixonou por Lucien Happersberger (a quem dedica o livro). 

Além disso, como o autor expressamente admitiu numa entrevista, a atmosfera que transportou para o livro provinha da sua própria experiência, tendo inclusive usado personagens que conhecera: “conhecemo-nos todos num bar, havia um tipo francês louro sentado numa mesa que nos pagou bebidas. E, dois ou três dias depois, vi a sua cara nas manchetes de um jornal parisiense. Tinha sido preso e, mais tarde, guilhotinado… Vi-o nas manchetes, o que me lembrou que já estava a trabalhar nele sem saber disso.”

Nessa mesma entrevista, Baldwin asseverou identicamente que o livro “não é tanto sobre homossexualidade, mas sobre o que acontece quando estás tão assustado que deixas de conseguir amar quem quer que seja.” Quanto à utilização de personagens brancas, em total contradição com o primeiro romance cuja acção se situava no Harlem e lidava com a experiência afro-americana, explica o autor: “Eu certamente não poderia ter – não naquele momento da minha vida – lidado com a outra grande questão, o ‘Negro problem’. A questão sexual-moral era uma coisa difícil de tratar. Eu não conseguiria lidar com ambas as proposições no mesmo livro. Não havia espaço para isso”. Ainda assim, conforme refere Caryl Phillips, para Baldwin a passagem do primeiro romance para o” Giovanni’s Room”, ou seja, da questão racial para a questão sexual, não foi assim tão despropositada. Regressando às palavras do autor: “como, de facto, pode alguém escrever sobre a raça sem escrever sobre a sexualidade?” Enfim, a fúria de viver de Baldwin levava-o a tudo querer.

E a dificuldade de, naquele momento, tratar ambas as questões era tudo menos trivial: basta lembrar as críticas que lhe foram endereçadas por autores negros, como, por exemplo, Eldridge Clever, que, num ensaio sobre Baldwin, comparou a homossexualidade a uma doença ao nível da violação de bebés. 

Um dos aspectos mais interessantes do livro encontra-se no estilo confessional utilizado para relatar a busca da identidade de David, que se encontrava imbuído numa dúvida quase metódica acerca de si próprio, o que permite uma particular proximidade e confere autenticidade à sua escrita. 

As semelhanças com o estilo de Hemingway são patentes desde o início do livro, como sublinha Colm Tóibin; aliás, o próprio ambiente do livro, embora a temática em muito divirja, lembra o “Fiesta – The Sun Always Rises” daquele, outro excelente livro igualmente pouco lembrado. Se a simplicidade do enquadramento invoca Hemingway, à medida que a acção avança, cresce a complexidade estilística que, no fundo, vai acompanhando o descortinar da complicação interior de David, a personagem principal. Mas não são estes paralelos que interessam verdadeiramente, senão a sua descoberta interior. De alguma forma, pode dizer-se que David revisita o passado de modo a tentar compreender-se. E, com esse móbil, vai relatando confessionalmente o sucedido, parecendo dirigir-se também a si próprio, pelo que as lembranças que relata são também uma auto-confissão, talvez na esperança de as conseguir finalmente entender na plenitude.

As dúvidas e, a outra luz, as hesitações, que naturalmente despontam em ambiguidade, são mesmo um dos aspectos mais proeminentes no livro – como referiu Nelson Algren (o escritor a quem o Lou Reed roubou a frase “take a walk on the wild side”; por coincidência, aquilo de que fala a música de Reed não anda assim tão longe do livro do Baldwin), o livro vai muito além do tema da homossexualidade: é a história de um homem que não consegue decidir-se, que não consegue aceitar a vida. 

David, a dado momento, começa justamente a discernir respostas ambíguas, emoções divididas, tanto nele como nos outros. Por exemplo, quando Hella, a namorada que tinha viajado até Espanha para pensar sobre o pedido de casamento que David lhe tinha feito, volta para Paris, ele nota que “o seu sorriso era ao mesmo tempo brilhante e melan-cólico” e, noutro passo, afirma que “[t]udo era como tinha sido e, ao mesmo tempo, tudo era diferente”. Próximo do término do livro, o próprio Giovanni – que aparentava ser o mais certo de si próprio e, talvez por isso, é o que mais sofre -, começa a aparecer igualmente de uma forma contraditória, o que acaba por dar-lhe mais densidade. Como quando Giovanni diz a David que já não o ama e este descreve-o da seguinte forma: “agarrou-me pelo colarinho, lutando e acariciando ao mesmo tempo, fluido e duro ao mesmo tempo”. 

E a ambiguidade das personagens é acompanhada de uma instabilidade sentimental que perpassa todo o romance, que se vai construindo como um conjunto de imagens polifónicas. Esta volubilidade encontra uma boa síntese quando, no final do livro, David confessa: “Não sei o que senti por Giovanni. Não senti nada por Giovanni. Senti terror e pena e uma luxúria crescente”. Precisamente como Jake do Fiesta, David parece sofrer com a sua inabilidade para amar – ou será meramente a culpa por amar daquela forma, outro dos temas fundamentais do livro? -, frieza que lhe permite compreender os outros, mas não a si próprio. “Tu não amas ninguém! Tu nunca amaste ninguém e estou certo de que nunca amarás!”, diz-lhe Giovanni.

De um prisma mais amplo, “Giovanni’s Room” foca também a busca humana pela identidade. É, desde logo, na própria história de Baldwin que a multiversidade da identidade se coloca: conforme lembra Daryl Pinckney, o seu passado remete para África e não para a Europa, e é talvez por isso que a “atitude” de Baldwin enriquece, de algum modo, a “cultura ocidental”: enriquece Shakespeare, Bach, Rembrandt, as pedras de Paris, a Catedral de Chartres ou o Empire State Building. E desta miscelânea de mundos resulta uma brutal sensação de modernidade.   

Como afirma Caryl Phillips, o romance é também sobre liberdade, como a liberdade de deixar os EUA rumo a Paris, de poder experienciar a vida boémia parisiense – pela lente da ideia de liberdade, faz agora mais sentido a semelhança entre os temas da raça e da identidade sexual, a que o autor se referia. Mas Baldwin encontra aqui – ou sente – uma interessante contradição: David, a dada altura, afirma que “nada é mais insuportável, assim que a obtemos, do que a liberdade. Suponho que é por isso que a pedi em casamento: para oferecer algo a mim próprio a que me agarrar”. Talvez o homem não consiga ser totalmente livre; e é porventura por essa razão, como prova a História, que as relações de poder, em especial do prisma dos dominados, tão bem caracterizam a natureza humana.

A busca pela identidade é não poucas vezes uma fuga. No caso de Baldwin, entre outras coisas, fugia de uma infância pobre, vivida num dos bairros complicados de Nova Iorque, fugia de um padrasto disciplinador, que era também um fervoroso crente e que o iniciou na igreja, de onde cedo fugiu, tendo-se refugiado em Greenwitch Village (onde sobrevivia à base de todo o tipo de trabalhos, e se começou a enturmar na comunidade artística), e fugia de uma América racista e conservadora. 

A inquietação de David, porém, é ainda mais complexa: se por um lado ele foge da América do seu pai, por outro lado ele não consegue simplesmente abandoná-la, esquecê-la. Conforme refere Garth Greenwell, talvez apenas verdadeiramente consigamos compreender o que significa casa com a experiência de viver no estrangeiro, de vivermos longe. De outro prisma, o significado de casa parece depender da sua perda: a dada altura, Giovanni diz a David que “[n]ão temos uma casa até que a deixamos e, depois, quando a deixamos, nunca mais podemos voltar”. 

No que toca à identidade americana, o livro mostra dois interessantes paradoxos. A América era, normalmente, o destino da emigração e um sítio para começar de novo, de onde parecia resultar a impossibilidade de sofrermos consequências inalteráveis – como a sexualidade, que para alguns não seria algo irremediável. Porém, a um tempo, em “Giovanni’s Room” é da América que David fugiu para começar de novo, e, a outro tempo, aquilo que aconteceu a David parece demonstrar justamente o inverso: não é possível fugir, por muito que se tente, isto é, o nosso passado não pode ser apagado. Tal como é pensado por David, quando observa um marinheiro por quem se sente (irremediavelmente) atraído: “[t]alvez casa não seja um lugar (…) mas simplesmente uma condição irrevogável” – e é a sua homossexualidade que parece estar em causa. Mas nem mesmo num momento de clarividência identitária David se fica pelo mero desejo; é também tristeza e culpa pelo seu destino que sente. Em qualquer caso, uma coisa é certa: como se pode retirar do final do livro, por mais que nos tentemos enganar, não é possível fugir de nós próprios.

E a separação do país de que David e Hella fugiam acaba por ser o culpado do seu próprio destino. A ideia de que a Europa nada de bom traz aos Americanos pode ser encontrada numa afirmação de Hella: “[o]s americanos nunca devem vir para a Europa, porque nunca mais vão conseguir ser felizes. O que há de bom num americano que não é infeliz? A felicidade era tudo o que tínhamos”. Está aqui um bom resumo tanto da inocente moral americana como da fabulosa felicidade americana – aos olhos dos americanos -, que serão importantes temas dos posteriores romances e ensaios de Baldwin.

E estas peregrinações identitárias por outros países, os confrontos culturais e tudo o que daí advém anteciparam o estranho sentimento moderno de não pertença a um sítio. Hoje, somos tudo e todos e, ao mesmo tempo, talvez não sejamos nada nem ninguém. Pelas palavras de Teju Cole retiradas de um ensaio justamente sobre Baldwin: “sinto-me em todos os sítios, da cidade de Nova Iorque à ruralidade da Suiça, o portador de um corpo negro, e tenho de encontrar a linguagem para tudo o que significa para mim e para todos os que olham para mim”.