Os agentes da disseminação da praga são os bem-falantes, exímios na arte de inventar, ludibriar e repetir falsidades, até que seja pacificamente aceite que ‘a soma de dois-mais-dois pode ser cinco’.
A quebra na exigência cívica é responsável pelo baixíssimo nível a que se chegou. De tal modo que criou espaço para a emergência de prestidigitadores de todos os matizes, hábeis na arte de enganar através de alguma das três formas clássicas: omitir, mentir e apresentar estatísticas.
O vício não é novo. A palavra ‘sofisma’, com profunda conotação negativa, chegou até nós na esteira da corrente filosófica dos sofistas da Antiguidade Clássica. Ao longo dos séculos, o assunto foi tratado por filósofos, religiosos, professores, investigadores, jornalistas e políticos.
Entre os mais recentes, o britânico David Owen tem especiais credenciais para o fazer: antes de ser ministro, nos anos 70, exerceu como médico psiquiatra e nunca deixou de o fazer enquanto desempenhou cargos públicos.
Na sua principal obra, Na Doença e no Poder, demonstra que «a doença física e mental pode afectar o processo de tomada de decisões de chefes de Governo, chefes militares e chefes de empresa» (é este o subtítulo do livro), revelando que o elegante ministro dos Negócios Estrangeiros de Sua Majestade foi sempre o psiquiatra Dr. Owen, que anotava em fichas clínicas privadíssimas as patologias dos seus interlocutores da vida pública.
Já no sossego da Câmara dos Lordes, Lord Owen teve tempo para aprofundar a análise, alargando o espaço da investigação a todo o século XX, para apresentar uma longa lista de doidos que nesses cem anos governaram o mundo, chefiaram as Forças Armadas ou dirigiram grandes empresas.
O livro explica boa parte dos casos de megalomania e abuso do poder como sendo o resultado da Síndrome de Húbris, que na Grécia Antiga era definida como «o desprezo pelo espaço alheio, com falta de controlo sobre os próprios impulsos, podendo converter-se num sentimento violento, inspirado por paixões irracionais e desequilibradas, que podem ir até à fúria».
Se, nesta caracterização, o leitor está a reconhecer Reis de Portugal e ministros do Reino, Presidentes e ministros da República, a culpa não é de Lord Owen, nem de quem traduziu ‘húbris’ como «tudo o que passa da medida: confiança excessiva, orgulho exagerado, presunção, arrogância e, até, insolência»; neste caso, quando o narcisismo leva alguém a equiparar-se aos Deuses. E isso acontece!
Terá isto alguma coisa a ver com a crise global que sobreveio ao subprime? O embuste dos ‘produtos tóxicos’ – formalmente aprovados por reguladores e supervisores de todo o mundo – não foi o resultado do sentimento de impunidade que toldou mentes e subverteu as regras?
E não foi a húbris – um compósito de deslumbramento, soberba e ganância – que invadiu bancos de investimento, agências de rating, auditores, supervisores, consultores e reputados escritórios de advogados, ao ponto de ‘legitimar’ a máxima de que… ‘o sucesso não pode ter barreiras’?