Paula Godinho. “A História é uma senhora lenta e a realidade é uma coisa muito rápida”

No livro que lançou, “O Futuro É Para Sempre”, fala das diversas estratégias da resistência e da construção dos tempos 

Paula Godinho é antropóloga, começou por estudar as continuidades. Nos campos, tudo parece repetir-se pela mesma ordem, como as estações e as colheitas, até que um dia, há muito tempo, estava em Trás-os-Montes a falar com uma curandeira e elogia-a: “A senhora sabe tanto, parece uma médica.” Ela começa a chorar e diz-lhe: “Pois é, sei curar muitas doenças, mas não consegui salvar o meu filho, que mo levaram os pides.” Para a antropóloga, isso foi um choque: a última coisa que se espera é que numa aldeia do concelho de Chaves, junto à fronteira, falem da PIDE. “Sobretudo quando se está a falar de papeira”, ironiza. A vida tem continuidades e colheitas, mas também tem momentos de rutura. E foi isso que Paula Godinho começou a estudar. A sua estrada de Damasco foi uma aldeia que acolheu refugiados republicanos espanhóis, foi cercada pela PIDE e teve um terço dos seus habitantes presos.

Há um livro de Althusser, a sua autobiografia, que tem como título: “O Futuro Dura Muito Tempo”. O seu livro tem como título “ O Futuro É Para Sempre”. Tem alguma razão para esse maior otimismo?

Quando se é professora e se tem alunos à frente, é melhor ser-se otimista, ou então é melhor mudarmos para cangalheira. O título do livro tem que ver com uma conjuntura em que o país entristecia. Quem mandava ia-nos dizendo, todos os dias, que o país não tinha futuro. Ora eu, todos os dias, nas aulas, confrontava-me com gente de 20 anos, e aos 20 anos só temos futuro. Por outro lado, comecei a ter a perceção: se calhar, as coisas sempre estiveram lá, mas eu não tinha momento para pensar isso. Apercebi-me de que nas minhas etnografias, ao longo da minha vida de antropóloga, mesmo quando recolhia memórias, o que as pessoas estavam a falar era do futuro. O que elas queriam era inscrever o que me diziam num tempo que pretendiam alongado.

No livro começa-se com uma história de um homem que vai plantar uma árvore sabendo que vai morrer antes de os frutos serem colhidos. Planta essa árvore para o futuro dos outros, mas não temos hoje uma coisa que é o contrário, que é uma aceleração total do presente em que o futuro parece nunca mais acontecer? 

Essa aceleração total do presente, ou essa perceção, provavelmente serve interesses determinados. Quando nós andamos tão acelerados, se calhar não temos tempo para refletir. E refletir é olhar para o tempo longo da História. Esta é uma obra de antropologia e também é uma obra que eu quero inscrita num tempo longo. Há um grande historiador catalão chamado Josep Fontana que, em 2013, publicou um livro chamado: “O Futuro É Um País Estranho”, fazendo alusão a uma outra obra de David Lowenthal chamada “O Passado É Um País Estrangeiro”. A ideia de o futuro ser um país estranho é, para Josep Fontana, uma forma de criticar a situação atual e dizer que o futuro sempre foi uma construção longa, que devemos coisas que conquistamos a gerações anteriores à nossa. Nos próprios trabalhos que eu tinha feito tinha verificado que o futuro era resultado de um tempo longo e que demorava muito tempo a conseguir. Vêm agora dizer-nos que as questões relacionadas com o progresso deixaram de fazer sentido, alegando que, neste Primeiro Mundo, não é possível pensar a humanidade e não há futuro. Enquanto antropóloga, estou preparada para lidar com as diversas culturas do mundo e tenho essa convicção de que o futuro não é um país estranho, mas que, se calhar, é mais fácil de ler numa região, que tenho visitado repetidamente, como a América Latina.

Não acaba por fazer uma espécie de arqueologia das resistências e de formas de resistência que nunca se concretizaram em nenhuma vitória?  

Quando se fala em resistência, e no livro fala-se em três tipos de resistência, temos de nos confrontar com vitórias e derrotas. O que é certo é que resistir vem do latim. “Resistente” vem de resistere, suportar, resistir, ficar firme. É formado por “re”, contra, mais “sistere”, que é manter-se de pé. No fundo faz parte da nossa própria evolução, enquanto humanos, mantermo-nos de pé. Sendo uma constante, também não significa que as derrotas não sejam também uma constante ao longo da História: para além de haver vitórias, há também derrotas. O meu livro, sobretudo numa das etnografias que eu trabalho, sobre o Couço, é um livro que também pretende olhar para as derrotas e o que podemos aprender com elas. Como diz Eduardo Galeano numa frase, que de resto serve de epígrafe ao livro: faz sentido continuar a resgatar as esperanças que fizeram enquanto humanos que resistíssemos; faz sentido interrogar e aprender com as ideias que, como dizia Marx, tinham de ser uma força material. 

Há uma cena na primeira parte do “1900”, realizado por Bertolucci, em que um proprietário de um latifúndio na Emília-Romanha, uma zona semelhante ao Alentejo, se volta para um assalariado rural e insulta-o, dizendo que ele tem as orelhas muito grandes. O camponês olha em desafio para ele, puxa da navalha, corta a sua própria orelha e entrega-a. Há uma geografia e uma história que formatam a resistência e que fazem com que as pessoas no Alentejo sejam diferentes das de outra região?

No livro, eu trato esse proletariado do sul. O que temos é uma camada que ao longo da História não tem memória de ter mantido a posse da terra. Aí existiu – temos dados para o Couço que falam de lutas desde o século xix – uma consciência de classe. Para usarmos os termos marxistas, temos uma classe em si que, num momento determinado, se torna classe para si. Noutros dois contextos do livro, um na Galiza e outro na fronteira que também pertence hoje ao Estado espanhol, estudam-se outras formas de reação. Por razões que se prendem com a estrutura social e fundiária, nesses outros locais, essas classes ou ficaram por construir ou não existiram nesse formato de classe. É o caso do Couto Misto, onde existiam grupos sociais mas não existia classe. Para a população do Couto Misto, uma das estratégias existentes não é a da afronta, ao contrário do Couço que, em momentos determinados, afronta, mas usar a arte da fuga que é o escapismo. Para a população do Couto Misto, ao longo da História – e os primeiros documentos que encontramos na Torre do Tombo datam do século xv -, essa é desde há muito a estratégia. Como se calcula, as aldeias não se chamam a si próprias Couto Misto. Nenhuma aldeia diz, de si, somos povo promíscuo. Ora bem, nessas aldeias do Couto Misto, a forma de resistir longamente foi o escapismo, foi nem sequer quererem ter identidade. A questão da identidade foi muito utilizada na antropologia desde os anos 80, mas ali não faz sentido, porque quanto mais camaleónicos fossem, melhor escapavam. O que é certo é que as três aldeias do Couto Misto viviam melhor que todas as outras na região. Viveram anos e anos sem pagar impostos à coroa de Portugal ou de Espanha. Ou seja, o escapismo era funcional como formato de resistência. No caso de outra etnografia que eu uso, a das costureiras de Verim, a forma de reação é diferente. Cheguei a esse estudo quando me apercebi das fortunas que no Estado espanhol foram construídas com base na costura. Ora eu trabalho aquela fronteira há 30 anos, e toda a vida me tinha confrontado com costureiras, mas imaginava-as – este é o vício do antropólogo – como as modistas de Lisboa, a trabalhar em casa. De facto, elas em Verim trabalham em casa; eu não as imaginava era a fazer 12 a 14 horas de jornada de trabalho e a fazerem os fatos, que hoje todos usamos, para as grandes empresas de pronto-a-vestir. Começo a fazer este trabalho quando me apercebo do papel que estas costureiras têm na constituição das grandes fortunas numa altura em que nos diziam que as grandes riquezas eram apenas acumuladas em processos financeiros e que era tudo plástico. Não era verdade. Ali havia uma acumulação que era devida ao trabalho destas senhoras. Entrevistei estas pessoas num momento da vida em que elas estavam sem emprego porque as grandes empresas externalizaram o trabalho para o Bangladesh, para o Brasil e para Marrocos, e estas senhoras ficaram sem trabalho. Curiosamente, num tempo mais recente, as grandes empresas voltaram a recrutar mão-de-obra local porque esses trabalhadores locais ficaram docilizados depois de anos de desemprego. Note que estas senhoras trabalham, como dizem, “ao negro”: não há descontos para a Segurança Social. E quando há, eles são feitos como “empresárias”. Aliás, no concelho de Verim, na viragem do século, quase toda a gente se dizia empresária.  

Esse trabalho em casa não permite nenhuma consciência de classe.

Aí não há. O termo que uso bebo-o numa grande antropóloga catalã, Susana Narotzky,  que fez com Gavin Smith um trabalho na zona de Alicante em que ali identificaram, para quem produz alpercatas, aquilo a que chamam – o termo é de Foucault – as lutas imediatas, que são aquelas em que, em vez de andarem a confrontar-se com o patrão, procuram um adversário que esteja ao mesmo nível. É a outra trabalhadora que pode ficar com mais trabalho do que ela, numa luta de mulher contra mulher. O inimigo é o inimigo imediato e está ao mesmo nível. É impossível forjar consciência de classe nestas circunstâncias. As mulheres que eu entrevistei são mulheres, inclusivamente, no que toca às entrevistas, que não queriam ser vistas a falar comigo porque eu já tinha sido vista a ir aos sindicatos. E isso podia-lhes prejudicar a quantidade de trabalho que lhes era distribuído. Foi das etnografias mais difíceis da minha vida porque elas desistiam de falar. Mesmo mulheres mais velhas, que tinham estado envolvidas no contrabando, me diziam: “Paula, já te contámos tudo do contrabando, mas isto é mais complicado.” Quando lhes perguntava a razão, elas diziam: “Porque podemos voltar a precisar, e se falarmos podemos ficar excluídas da distribuição do trabalho.” Esta luta de mulher contra mulher, em que o tipo que distribui trabalho é próximo e o patrão está longe, não gera consciência de classe, ao contrário do que se passava no Couço.  No Alentejo, o patrão é o inimigo, é identificável e gera luta, resistência e consciência de classe, que é compaginável com outras formas de resistência no quotidiano, para além do confronto.

Formas que no livro são associadas como a indolência no trabalho, a coscuvilhice, uma certa manha, ao nível daquela  anedota soviética que dizia: “Eles fingem que nos pagam e nós fingimos que trabalhamos.” 

Isso é uma constante para os três formatos (escapismo, lutas imediatas e confronto), aquilo que são as três práticas possíveis que todos nós usamos no nosso quotidiano. É aquilo a que o antropólogo e cientista político norte-americano James C. Scott chama as armas dos fracos. São aquilo a que ele também chama os formatos de discurso escondido. As armas dos fracos fazem com que as pessoas trabalhem mais devagar. Porque iriam fazê-lo mais depressa se vão ganhar o mesmo? As armas dos fracos passam pelo falatório e o boato, que arruínam reputações, passam por realizar mal o trabalho. Por exemplo, um homem recrutado para tirar a cortiça: se ele achar que está mal pago pode fazer com que o sobreiro nunca mais possa dar cortiça, basta dar-lhe o golpe mais fundo. Os patrões tinham de saber lidar muito bem com isso, porque um trabalhador descontente e mal pago pode destruir-lhe os sobreiros. São armas dos fracos porque, no momento em que forem confrontados, os trabalhadores que têm esse tipo de prática vão dizer: “Foi sem querer, não sabia.” A alegada ignorância é também um formato de resistência. Estas formas encarnam aquilo a que chamamos infrapolítica, não se veem à vista desarmada, como os raios infravermelhos. Também aqui há dificuldade em reconhecer a dimensão política destes atos e, todavia, eles são políticos. 

Hoje há um fenómeno diferente. Parece que o surgimento de uma dinâmica nacionalista e identitária impede e tira espaço ao surgimento de outras formas de confronto e contestação que se tornem ideias com força material. 

Olhe-se para o século xix – às vezes, observar o ciclo longo é útil para perceber melhor as coisas. Em 1848 acontecem duas coisas ao mesmo tempo: é a primavera das nações e, também no mesmo ano, sai o Manifesto Comunista, ao mesmo tempo que temos as nações a construir-se – porque o nacionalismo é do século xix, as nações podiam já existir mas não existiam cidadãos nacionais, não havia sequer línguas unificadas nem o reconhecimento de uma história comum. É no século xix que isso tudo vai acontecer.  E ao mesmo tempo surge um movimento de enorme importância que é internacionalista. A força material das ideias pode jogar em vários níveis. Porquê? Porque os campos sociais são elásticos: vamos ver quem ganha. Em certos momentos, uns são derrotados e recuam, e mais tarde podem avançar e ganhar. Este crescendo dos nacionalismos é também compaginável com formatos de resistência que se tornam também transnacionais. Agora, é verdade que a resistência, neste momento, não está no seu melhor.

Tem uma passagem do livro em que contesta um certo soberanismo e o regresso à determinação política das coisas no espaço nacional. Esse não é o único caminho possível contra um ultraglobalismo que é ditado por forças não democráticas dos mercados financeiros?

Esse é um caminho, mas não é o único. Há alguns anos, estava a ler etnografias sobre a Costa Rica em que o campesinato, para resistir à imposição da monocultura por empresas multinacionais que o fragiliza, cria ligas transnacionais de enorme importância. Temos movimentos a acontecer, tal como em 1848. 

Isso é contraditório com o aparente facto de que, nos sítios em que a esquerda à esquerda da social-democracia resiste melhor, cruza questões de classe com questões nacionais: é o caso da Irlanda, Catalunha, País Basco – até, de alguma forma, a teorização pelo Podemos da construção de um povo. E, simultaneamente, a aposta do cosmopolitismo parece casar bem pare certos setores intelectuais, como para a grande finança.

Aí casa outro fenómeno. Dizia há pouco que as nações são construídas a partir do século xix. Algumas, porque a correlação de forças não foi tão favorável, ficaram sem constituir-se como Estado-nação. E não podemos falar das nações como de futebol, que se divide em várias ligas. Não houve umas que conseguiram no século xix, e essas merecem, e outras que não conseguiram e seriam relegadas para uma segunda liga. Há, de facto, quem esteja a lutar ao mesmo tempo, vigorosamente, pelo seu direito a ser Estado-nação e não o faça a partir de um perfil conservador. Há quem não entenda que, nesse processo, todos os outros povos são inimigos. Quando se olha, por exemplo, para projetos de construção de nação como a Galiza, Catalunha e País Basco, percebe-se que os formatos de construção da nação não tem necessariamente de fazer um discurso em que os outros povos são vistos como inimigos.

No caso basco, o início do movimento nacionalista no século xix, com Sabino Arana, faz um discurso racista. Só no século xx é que as correntes abertzales (patrióticas), que se constituem em torno da ETA,  fazem um discurso não racista, dizendo que são bascos todos os que lá vivem.

Não conheço tão bem o nacionalismo basco. Conheço bem a Galiza. Mas pode–se dizer que é possível que gente, que tem a uni-la uma consciência de classe, considere que a construção de uma nação lhes pode ser útil para o reconhecimento dessa mesma consciência de classe.

Do ponto de vista da autodeterminação das pessoas, mas do ponto de vista de classe não pode fazer esconder este e tecer uma ilusão?

Uma coisa é o que nós gostaríamos que a força material das ideias concretizasse, outra é o que a realidade nos mostra. A História é, de facto, uma senhora lenta, como Eduardo Galeano nos mostra. É uma senhora que se move com lentidão; a realidade, às vezes, é muito mais rápida. E é difícil compaginar as duas. Quando olhamos o assunto de fora e à distância, além do tempo, podíamos pensar: “Isto podia ser tido assim.” Mas o que é facto é que não foi. 

 Havendo neste mundo condições reais cada vez mais desiguais, por que razão não há essa resposta?

Vai havendo, em nichos, mas o que se passa é que também temos meios hegemónicos que são poderosíssimos. Neste momento voltei a dar uma cadeira na faculdade que é Antropologia e Movimentos Sociais. A última vez que tinha dado foi em 2012, e nessa altura estávamos em Portugal sob o domínio de três entidades em que ninguém tinha votado [FMI, BCE, Comissão Europeia], mas que tinham desenvolvido um programa económico e político que nos fazia sofrer a todos. E eu trazia aos alunos extratos de telejornais, intervenções dos comentadores, dessas autênticas fábricas do consentimento que íamos tendo. Era o voltar a realidade ao contrário. Marx dizia que a ideologia era como a câmara escura, com a realidade virada do avesso. E isso passou a ser uma constante: todos os dias passavam nas televisões comentadores completamente alinhados, com pensamentos iguais. Essa terceira janela, como lhe chamou Paul Virilio, que é a televisão, tem esse papel. É claro que existem outros meios de chegar às pessoas, mas estas fábricas de consentimento têm um poder muito significativo. É evidente que é necessário criar contra-hegemonias, é importante que essa força material das ideias se erga também a partir daqueles para quem esses formatos da dominação merecem ser denunciados num tempo como este, como dizia o movimento Occupy Wall Street, em que são mesmo 99% contra 1%.  Quem o diz não é uma perigosa revista anarquista nem sou eu, mas a revista “Forbes”.  

Antigamente, o conceito de ideologia pressupunha a existência de uma ilusão. Retirada essa ilusão, as pessoas percebiam a realidade e ganhavam consciência do seu papel para a alterar. Hoje, toda a gente sabe que há 1% de muito ricos, com quase metade do rendimento, e 99% com o resto, mas isso não altera nada. Não há é ideia de que é possível mudar.

Eu, no livro, incluo três etnografias porque temos, na realidade, situações muito diversas. Há situações dos muitos que andam consigo no metropolitano, em escapismo, a tentar escapar-se, e não estou a falar necessariamente em imigrantes clandestinos; depois há aqueles que andam em lutas imediatas contra gente que acham que os pode prejudicar; e, finalmente, há alguns que se encontram noutra situação e que pensam que a mudança das suas circunstâncias passaria por uma ação determinada. Temos todas estas situações. O que se passa é que não se conseguiu até agora fazer crer a parte significativa da população que, se calhar, a resposta do escapismo e das lutas imediatas não é a melhor. Isso acontece porque as condições em que as pessoas vivem não as encaminham para formatos mais coletivos. Lembre-se das grandes manifestações que se fizeram contra a troika – e depois, depois o que é que fica? E como gerimos as derrotas e olhamos para elas e para os tempos que se seguem? Porque fomos derrotados? Sabemos as razões? É isso que é importante pensar.