Falemos claro!

Agosto costumava ser tempo de férias e descontracção, mas hoje tal conceito oferece cada vez mais dúvidas.

este agosto é, para demasiados portugueses, a dúvida sobre quais os postos de trabalho que ainda permanecerão em setembro, quais os ajustamentos que ainda estarão para chegar em impostos e cortes de direitos sociais e quais as escolhas que muitos jovens irão fazer entre inscrever-se num curso em cuja utilidade cada vez acreditam menos ou emigrar… aguarda-se também o que dirá a troika no fim do mês, especula-se sobre o que dirá draghi daqui a umas semanas e desespera-se sobre quando é que ‘esta coisa começará a melhorar’…

neste ambiente de grande apreensão, haverá ainda espaço para reflectir sobre o colectivo, isto é, sobre o nosso destino comum enquanto sociedade? é que é cada dia mais difícil superar o ‘cada um por si’ que predomina em tempo de crise, pese embora a dificuldade de encontrar saída sem ideias claras. nesta linha, e antes de mais, convirá pôr de lado o marketing político e os ‘soundbites’ das campanhas eleitorais e, tão friamente quanto possível, tirar algumas conclusões sobre a experiência que vivemos até aqui.

1. não valerá a pena continuarmos a perder energias em processos de culpabilização sobre o ‘estado a que o país chegou’. se compararmos a trajectória da discussão política que vai ocorrendo na grécia, irlanda, portugal, espanha, itália e frança (progressivamente), verificamos que ela é sempre igual, tão constante quanto os discursos que nos primeiros três países (brevemente quatro…) sucessivamente reafirmaram a solidez da economia nacional e a resistência à pressão dos mercados que cobram preços ruinosos pelo crédito soberano para acabarem no pedido de resgate e nas medidas da troika. com distâncias de apenas alguns meses uns relativamente aos outros…

2. a verdade é que a moeda única europeia entrou em funcionamento num período de explosão generalizada e fortemente desregulada do crédito. a redução e harmonização artificial das taxas de juro nos países do euro, acompanhada pelo aumento gritante dos desequilíbrios na competitividade relativa das economias centrais/do norte versus periféricas/do sul (estimuladas pelo próprio processo de integração), determinaram uma insustentabilidade do serviço de dívida soberana progressivamente evidenciada de acordo com essa fragilidade relativa. em conclusão, sem euro-obrigações e uma alteração do perfil de intervenção do banco central europeu (bce) não sairemos (todos) da crise actual e sem uma reforma de fundo na estrutura da moeda única e no funcionamento do mercado interno não evitaremos a ocorrência periódica de crises semelhantes no futuro.

3. o que nos encaminha para uma outra questão: se é verdade que uma das ‘saídas’ da crise actual será ‘mais integração’, as condições políticas – e, nomeadamente, de confiança mútua entre europeus – são hoje mais frágeis do que em qualquer outra fase do projecto europeu. aceitar que a união europeia (ue) tenha um ministro das finanças comum é muitíssimo mais difícil depois das acusações moralistas e tutelares que acompanharam a degradação económica e social dos países que menos beneficiaram com a moeda e mercado comuns; a situação atingiu um ponto culminante quando a saída da grécia da moeda comum parece ser mais determinada pela exposição dos seus credores ao risco soberano do que pelo destino de onze milhões de europeus com uma das culturas mais centrais ao projecto político europeu.

4. neste mesmo quadro, convém clarificar o papel da troika e do ‘programa’ que ela impõe; se como devedores não podemos hoje fugir dele, não devemos confundir essa fatalidade com a absurda crença de que os credores (que a troika representa) querem o ‘nosso bem’. o que os credores querem é ser pagos, tal como no caso da grécia, da irlanda ou da espanha. ao aceder à informação total sobre o país, e portadora de uma visão exógena que acrescenta lucidez e objectividade ao diagnóstico, a troika pôde fazer o diagnóstico que cabe a uma empresa de consultoria ou de auditoria, acertando em muitas das fragilidades que a maioria de nós até já conhecia. mas sejamos claros: tal diagnóstico não é política ou ideologicamente neutro.

por outro lado, a maioria das reformas de fundo vai marcando passo ao sabor dos velhos compromissos partidários e interesses instalados, enquanto o essencial do remédio imposto se centra no esmagamento dos salários e não parece funcionar (aqui como antes na grécia). assim sendo, renegociar a receita não é uma opção nem pode ser o resíduo de orgulho de alguns responsáveis; renegociá-la é uma necessidade a explorar dentro dos limites possíveis, junto de uma troika que – abandonemos definitivamente quaisquer ingenuidades – não corresponde a nossos ‘amigos’ ou ‘mestres’ mas apenas representa os nossos credores.

*economista e eurodeputada